Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
ENTREVISTA / INTERVIEW
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e9386
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
1
Este conteúdo utiliza a Licença Creative Commons Attribution 4.0 International License
Open Access. This content is licensed under a Creative Commons attribution-type BY
Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da
experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Entrevistador: Prof. Dr. George Leonardo Seabra Coelho
Entrevistado: Prof. Dr. Ramofly Bicalho Santos
George Leonardo Seabra Coelho
1
1
Universidade Federal do Tocantins - UFT. Licenciatura em História. Rua 5 Qd V Casa 3 Setor Arnaldo Prieto. Arraias - TO.
Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: george.coelho@hotmail.com
A presente entrevista faz parte de um
extenso projeto, o qual venho
desenvolvendo a três anos. De modo mais
específico, esse projeto visa registrar as
experiências na implementação das
Licenciaturas em Educação do Campo em
diferentes Universidades Federais
Brasileiras. Antes de apresentar a
entrevista com o Prof. Dr. Ramofly
Bicalho, é importante realizar algumas
ponderações. Conheci o glorioso Ramofly
desde que cheguei à Universidade Federal
do Tocantins em 2014, de para cá, nos
encontramos em diversos Congressos e
Encontros. A partir de minhas conversas
com ele, esse grande intelectual me
incentivou nesse projeto, onde de forma
amigável cedeu essa entrevista. Autor de
diversos artigos, capítulos de livros e obras
completas e, com a mesma dedicação
dispensada para os estudos sobre a
educação direcionada às populações
camponesas brasileiras, o Prof. Ramofly
pôde nos contar um pouco sobre sua
trajetória acadêmica, a institucionalização
do curso de Licenciatura em Educação do
Campo na UFRRJ, até suas expectativas
quanto ao fortalecimento do curso no
futuro. Então, espero que o leitor
acompanhe a entrevista concedida
apropriando de suas próprias palavras
por um militante das políticas públicas de
Educação do Campo.
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
2
Ramofly Bicalho, o senhor pode nos
contar um pouco sobre sua formação
acadêmica? Conte-nos sobre sua
trajetória como pesquisador e como
docente.
R:. Terminei minha graduação em
História na Universidade Federal
Fluminense (UFF) em 1999 e Pedagogia
pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ) em 2013. Conclui a
Especialização Lato sensu em Educação de
Jovens e Adultos (EJA) na UFF no ano de
2001, onde estudei a Formação do
Educador de Jovens e Adultos. No ano de
2003 recebi o tulo de Mestre em
Educação pela UFF. Minha dissertação
i
abordou diretamente a Educação de Jovens
e Adultos no Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Minha tese de doutorado
ii
em Educação foi
defendida na Universidade de Campinas
(UNICAMP) no ano de 2007 e abordou o
Projeto Político Pedagógico das escolas do
campo do MST: experiências de
educadores e lideranças. Meu estágio de
pós-doutoramento realizado na UFF, em
2018, colocou em pauta o Programa de
Apoio à Formação Superior em
Licenciatura em Educação do Campo
(PROCAMPO).
quanto tempo o senhor dedica-se à
Educação do Campo? Poderia
compartilhar algo sobre sua trajetória
como coordenador do curso de
Licenciatura em Educação do Campo na
Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ)?
R:. Estou desde 1997 aprofundando
meus estudos acerca da educação no MST,
num primeiro momento. Dos anos 2000 em
diante, venho dialogando com o conceito
de Educação do Campo, na estreita relação
com os movimentos sociais. Quando fui
aprovado no ano de 2008 para UFRRJ, na
disciplina de Políticas Públicas de
Educação do Campo, logo fui convidado
pela Administração Superior da
Universidade para, juntamente com outros
colegas, protagonizar a criação da
Licenciatura em Educação do Campo
(LEC), via PRONERA. Concorremos ao
edital no ano de 2009, iniciamos a parceria
da primeira turma com o PRONERA em
2010 e finalizamos essa primeira turma em
2013. Em 2012 concorremos ao edital
PROCAMPO/MEC e ganhamos. N ano de
2013 ajustamos o Projeto Político
Pedagógico da Licenciatura em Educação
do Campo Regular para iniciarmos nossa
primeira turma em 2014. Assumi a
Coordenação da LEC regular em 2013 e
fiquei até 2016. Neste mesmo período,
criamos o Departamento de Educação do
Campo, Movimentos Sociais e Diversidade
(DECAMPD).
Fale um pouco mais sobre os objetivos,
as atividades e os projetos futuros do
Departamento de Educação do Campo,
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
3
Movimentos Sociais e Diversidade
(DECAMPD)?
R:. Um dos objetivos principais, na
atual conjuntura do DECAMPD, é a
organização das nossas atividades,
especialmente do TC Tempo
Comunidade, em Grupos Temáticos (GTs).
Educadores/as e estudantes (em média 12
por grupo) se unem por afinidade temática,
para desenvolverem trabalhos que
articulem TC, TE Tempo Escola e TI
Trabalho Integrado. Importante salientar
que estes avanços ainda não estão
plenamente consolidados. Sua
consolidação depende de muita
organicidade, trabalhos e atividades, com
apoio por parte da Coordenação da
Licenciatura em Educação do Campo, o
próprio DECAMPD e a UFRRJ, além dos
movimentos sociais camponeses e demais
entidades parceiras.
O senhor poderia narrar o processo de
institucionalização do curso de
Educação do Campo na UFRRJ, das
primeiras discussões até esses três
primeiros anos?
R:. Nosso processo de
institucionalização foi, de certa forma
facilitado, em função das inúmeras
experiências de Educação do Campo
acumulada pelos colegas professores na
criação, organização e condução da
Licenciatura em Educação do Campo, via
PRONERA. Foi durante a
LEC/PRONERA que resolvemos, em
parceria com os movimentos sociais,
concorrer a LEC/PROCAMPO.
Trabalhamos com a Pedagogia da
Alternância, Formação por área de
conhecimento: Ciências Humanas e
Sociais, basicamente História, Sociologia,
Agroecologia e Educação Popular.
Utilizamos o Processo de Seleção Especial,
com questões de múltipla escolha, redação
e memorial. Nos três primeiros anos (2014,
2015 e 2016), em função dos recursos que
recebemos, foi possível desenvolver com
mais propriedade a Pedagogia da
Alternância, além de conseguir apoio com
alojamentos, cópias de materiais,
alimentação e bolsas para os estudantes
carentes.
Para garantir que os diversos sujeitos
do campo tenham acesso ao curso, o
processo seletivo discente, via edital
público, é composto por provas de
conhecimentos culturais e gerais, uma
redação sobre temas específicos da
realidade brasileira e um “Memorial” sobre
seu percurso de vida e formação. Este
acesso especial se justifica na medida em
que o potencial estudante da LEC tem, em
geral, um percurso formativo bastante
deficitário, principalmente a parcela do
público de mais idade que concluiu o
ensino médio em cursos aligeirados, com
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
4
longas interrupções durante este
acidentado caminho de escolarização.
Além disto, os diversos sujeitos do campo,
historicamente, são excluídos de uma
educação básica acessível e de qualidade,
que gera grandes obstáculos para o
ingresso no ensino superior e os
impossibilita de atuarem como educadores
e educadoras em suas próprias
comunidades.
As estratégias de ingresso dos
sujeitos camponeses, possui um caráter de
política afirmativa, a partir do seu processo
de seleção especial. Nestes anos de
implantação, a LEC vem enfrentando os
riscos de mudança no perfil dos
ingressantes, que se traduziria na
descaracterização do PROCAMPO,
enquanto política pública. Reafirma-se,
novamente, que a uniformização das
seleções, via Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM), não atende os desejos
dessa Licenciatura. Os riscos têm sido
enfrentados, a partir de ampla articulação
interna dos docentes. A manutenção dos
processos de seleção especial, passa pelo
diálogo saudável com os setores
administrativos e financeiros, no interior
da Universidade.
Nesse processo de
institucionalização da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ, nosso
objetivo principal sempre foi garantir o
ingresso da juventude camponesa,
agricultores familiares, quilombolas,
educadores/as das escolas do campo da
Baixada Fluminense, entre outros atores
estratégicos na consolidação do curso. Por
outro lado, no processo de seleção ainda
persistem, entre outras, as seguintes
questões: 1: As estratégias de divulgação
têm dificultado o acesso à informação dos
camponeses sobre a realização do processo
de seleção especial. 2: Os índices de faltas
no processo de seleção são altíssimos.
Você se refere várias vezes às parcerias
com os movimentos sociais, poderia
nominar quais os movimentos sociais e
sujeitos pertencentes a esses movimentos
que estavam ligados ao movimento de
criação do curso na UFRRJ?
R:. MST Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra,
CONTAG Confederação dos
Trabalhadores na Agricultura; MPA
Movimento dos Pequenos Agricultores;
CPT Comissão Pastoral da Terra;
Quilombolas; Indígenas e Caiçaras.
Você afirma que a LEC vem
enfrentando os riscos de mudança no
perfil dos ingressantes, que se traduziria
na descaracterização do PROCAMPO,
enquanto política pública. Como você
entende essa questão?
R.: Compreendo que a
institucionalização das Licenciaturas em
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
5
Educação do Campo, se desarticulada das
lutas desenvolvidas pelos movimentos
sociais camponeses, pode contribuir para a
descaracterização de tais cursos, em
especial: 1) Dificuldades de
acompanhamento e incompreensão da
relação interdisciplinar entre TC Tempo
Comunidade e TE Tempo Escola. 2)
Dificuldades em compreender os
princípios da pedagogia da alternância e a
formação por área de conhecimento. 3)
Pequena relação dos estudantes com os
movimentos sociais. 4) Desmobilização em
torno das lutas políticas no interior da
UFRRJ e auto-organização estudantil. 5)
Dificuldades de perceber a necessidade de
planejar coletivamente, com educadores e
educandos, as atividades do semestre, em
especial, o TC Tempo Comunidade e TI
Trabalho Integrado.
Na sua concepção, quais foram os
principais avanços, dificuldades e
desafios até o momento, assim como
para o próximo triênio?
R:. Os avanços ocorridos na
Educação do Campo são frutos da
resistência organizada das populações,
através das práticas de formação política e
por meio das lutas deflagradas pelos
movimentos sociais. Ao longo de décadas,
resistem às inúmeras situações de
dominação, provocam ações e pressionam
governos na implementação de diretrizes,
normas, orientações e políticas públicas
que atendam aos anseios e demandas dos
trabalhadores e trabalhadoras do campo.
A Educação do Campo é resultado
do acúmulo das experiências de diferentes
sujeitos sociais em seus territórios e
temporalidades. Constitui uma extensa
caminhada marcada por avanços e
retrocessos, lutas e resistências das
trabalhadoras/es camponeses, movimentos
sociais e Universidades. Representa a
síntese de experiências socioeducativas
que resistem às políticas de consolidação
da sociedade marcadamente urbana e o fim
das populações camponesas. Esta
concepção de educação, diferente da escola
tradicional, valoriza os saberes oriundos
das experiências vividas, as referências de
cultura e trabalho, além da relação entre
agricultores e natureza.
Por outro lado, existem dificuldades
históricas na consolidação de projetos que
compreendam a Educação do Campo no
Brasil e sua estreita relação com os
movimentos sociais e outras lutas
camponesas. As escolas do campo, por
exemplo, em sua grande maioria,
encontram-se em locais de difícil acesso,
comprometendo o acompanhamento de
educadores e educandos, além da
orientação pedagógica. São recorrentes os
contratos temporários, baixos salários,
despreparo e preconceito com os saberes
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
6
da terra. Boa parte dos materiais didáticos
utilizados privilegiam os saberes presentes
nas escolas das metrópoles brasileiras,
refletindo o absoluto desconhecimento das
realidades camponeses. Todas essas
dificuldades corroboram para o
enfraquecimento das políticas públicas de
Educação do Campo.
Mesmo com tantos avanços nas
legislações voltadas para Educação do
Campo, vale destacar que a realidade das
escolas continua ainda muito precária. O
advento da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (9394/96) e a
implementação das Diretrizes Operacionais
da Educação Básica, em 2002, não
transformou profundamente as escolas do
campo. Este é ainda um enorme desafio.
Vale considerar que o espaço
acadêmico ainda apresenta inúmeras
resistências à tal interação entre Educação
do Campo e movimentos sociais
camponeses. Muitas Universidades
apresentam dificuldades para aceitar a
presença de estudantes vinculados aos
movimentos sociais (MOLINA e JESUS,
2010)
iii
. Este território foi, historicamente,
institucionalizado para servir à elite
econômica e intelectualizada. Por outro
lado, a contribuição das Universidades
públicas à Educação do Campo revela que
muitos educadores e educandos buscam
novas orientações para o ensino superior
no país, na perspectiva de ir ao encontro
dos interesses daqueles que foram
socialmente excluídos.
Notamos que o desrespeito às
identidades dos sujeitos do campo nos
meios de comunicação, imprensa,
instituições públicas e privadas da
sociedade brasileira enaltecem as
provocações, humilhações e destruição da
autoestima. O campo brasileiro é uma
incerteza. Faltam escolas, transporte
escolar intra-campo, condições de acesso e
escoamento da produção. Altos índices de
contaminação pelo uso intensivo de
agrotóxicos, concentração de terras,
utilização de sementes transgênicas e
avanço do agronegócio, em detrimento, da
semente crioula e valorização da
agricultura familiar.
Os maiores desafios das políticas
públicas de Educação do Campo e, em
especial, a Licenciatura em Educação do
Campo na UFRRJ, são: 1) Promover o
ingresso dos sujeitos camponeses na
Educação Superior; 2) Garantir o
protagonismo dos movimentos sociais do
campo na sua execução; 3) Se vincular
organicamente com as lutas realizadas nas
escolas do campo; 4) Materializar-se a
partir da alternância pedagógica; 5)
Promover a formação do trabalho docente
multidisciplinar, considerando a formação
por área de conhecimento. 6) Vincular os
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
7
cursos de formação de educadores com as
lutas dos camponeses pela permanência na
terra e conquista das escolas do campo.
Sendo os cursos de Licenciatura em
Educação do Campo organizados em
Pedagogia de Alternância, como o
senhor compreende essa abordagem?
R:. Compreendo que existem
dificuldades nas práticas de alternância
desenvolvidas pelas Licenciaturas em
Educação do Campo e escolas do campo
que devem ser enfrentadas, em especial, a
ausência efetiva de políticas públicas no
campo, tais como: melhoramento das
estradas, localização das escolas, meios de
transporte e formação docente. A
Pedagogia da Alternância e os sistemas
educativos, municipais e estaduais, devem
contribuir para o fortalecimento do campo,
reconhecendo suas especificidades, vozes,
histórias, memórias, identidades e atores
sociais. A Educação do Campo, tão carente
de propostas e ações efetivas que
contemplem a população camponesa,
encontra na Pedagogia da Alternância, a
valorização da cultura local, as
experiências inovadoras de
profissionalização, fortalecimento do meio
e autoestima das comunidades, numa
íntima e saudável articulação com a
soberania alimentar, os movimentos sociais
do campo e a agricultura familiar, orgânica
e agroecológica.
Nessa conjuntura, as Licenciaturas
em Educação do campo e as escolas podem
se apropriar dos debates acerca da
interdisciplinaridade, numa estreita
articulação com a formação integral e
valorização das histórias de vida dos
sujeitos, individuais e coletivos. Na
Pedagogia da Alternância é possível
contribuir com a resistência e as diversas
lutas em defesa dos valores culturais e
identitários dos sujeitos, direta e
indiretamente, envolvidos.
Compreendo ainda que as
dificuldades apresentadas em relação às
atividades do Tempo Comunidade (TC),
podem aumentar em função da falta de
apoio das ferramentas da Educação à
Distância (EAD) nos territórios e os
escassos recursos financeiros. Ou seja, a
concepção de alternância e a formação por
área de conhecimento podem apresentar
dificuldades de acompanhamento e
incompreensão da relação interdisciplinar
entre TC e Tempo Escola (TE). Na
alternância é fundamental não perder a
centralidade do TC. Compreender os
limites e as possibilidades da produção
material da vida no campo, tem sido uma
das preocupações fundamentais da
organização curricular na Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ, em
diálogo com a formação de educadores por
área de conhecimento, integrada por TE e
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
8
TC, além da estreita relação entre teoria e
prática.
O senhor pode descrever como
funcionou a Alternância durante sua
gestão como coordenador do Curso de
Licenciatura em Educação do Campo
UFRRJ?
R:. Os sujeitos, individuais e
coletivos, da Licenciatura em Educação do
Campo na UFRRJ compreende que a
Pedagogia da Alternância é estratégica na
formação inicial, continuada e
emancipadora de educadores, educandos e
seus familiares. Ela é utilizada para
enfrentar o êxodo rural, as condições de
pobreza e abandono do campo. Ela pode
contribuir na consolidação dos espaços
democráticos e na produção crítica do
conhecimento. Através dos instrumentos
pedagógicos, promove as condições
básicas de formação dos educadores e
educandos, em sintonia com a
sustentabilidade, o contexto social,
profissional, pessoal e de transformação do
meio rural. Esta formação conta com a
parceria de familiares, movimentos sociais,
sindicatos, associações e demais
organizações locais, num estreito diálogo
com as experiências concretas de educação
popular, vivenciadas pelos estudantes nas
comunidades, além de processos de
ensino-aprendizagens contínuos,
considerando o seguinte percurso:
propriedade escola propriedade.
A Pedagogia da Alternância, em sua
grande maioria, rompe com os valores
conservadores e tradicionais. Defende a
emancipação dos sujeitos e o envolvimento
crítico na produção do conhecimento. As
práticas de alternância e a formação do
educador podem resultar em mudanças de
paradigmas na Educação do Campo. Essa
relação exige estudos que compreendam o
contexto geral de formação no país e as
principais teorias que norteiam tais práticas
pedagógicas, sociais, políticas e culturais.
Nessa abordagem, é essencial conhecer as
especificidades da Educação do Campo e
sua estreita ligação com o cotidiano dos
sujeitos camponeses, a reforma agrária, a
agricultura familiar, orgânica e
agroecológica, além das inúmeras lutas
contra o fechamento das escolas do campo,
as sementes transgênicas e a utilização dos
agrotóxicos.
Na alternância é possível romper
com pedagogias focadas apenas na relação
professor aluno saber. A estreita
relação entre teoria e prática e as
experiências de educação popular são
extremamente valorizadas. O termo
alternância, enquanto projeto de formação
política, integral e sustentável, é utilizado
no plural, pois denota valores humanos,
socioambientais e afirmação de
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
9
identidades. Quando TE e TC se fundem
nos espaços formativos dos agricultores
familiares, Quilombolas, Sem Terra,
mestiços, agricultores urbanos e juventude
rural, os pertencimentos sociais, culturais e
de trabalho dos sujeitos, individuais e
coletivos, do campo são ressignificados. A
formação em alternância exige elevados
níveis de organização na articulação dos
tempos e espaços de aprendizagens,
consolidando a formação humana, social,
ética e profissional. O plano de estudos,
por exemplo, é um instrumento
importantíssimo na exploração da
realidade e experiência dos alternantes,
contribuindo com observações, pesquisas,
debates e reflexões acerca da produção
crítica e emancipadora do conhecimento.
Este instrumento didático-pedagógico
valoriza o ambiente cultural dos estudantes
e a riqueza de suas linguagens, costumes e
valores. Prepara ainda para cidadania e a
autonomia de pensamento.
Foi possível perceber o diálogo da
LEC com os movimentos sociais e
sindicais, de diversas organizações
camponesas, entre eles: MST, Movimento
dos Pequenos Agricultores (MPA),
Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB), Federação dos Trabalhadores na
Agricultura (FETAG), Associações de
Remanescentes de Quilombos, Caiçaras,
Agricultores Familiares, Fórum Municipal
em Nova Iguaçu, Fórum Fluminense de
Educação do Campo (FOFEC), Escolas
Família Agrícola (EFA/ES), Movimento
Negro, Povos de Terreiro e Pré-Vestibular
para Negros e Carentes (PVNC).
Reiteramos que a organicidade desta
Licenciatura dialoga com a Pedagogia da
Alternância e seus sujeitos, no desafio de
articular escolarização, melhorias nas
condições de vida e fortalecimento político
dos grupos sociais.
Para estes segmentos sociais, a
Pedagogia da Alternância pode significar
alternativas à manutenção de vínculos de
trabalho coletivo e/ou familiar, assim
como, pode fortalecer as lutas sociais
travadas em contextos de disputas por
terra, ocupação das grandes propriedades
rurais improdutivas, regularização
fundiária, reconhecimento de áreas
remanescentes de quilombos e territórios
expropriados das populações caiçaras. A
formação, em nível superior, ao invés de
afastar, física e intelectualmente, os
educandos de sua realidade local, adquire
um enorme potencial de colaboração e
comprometimento com o contexto
histórico-político destes sujeitos,
individuais e coletivos.
No caso da Licenciatura em
Educação do Campo da UFRRJ, a
Pedagogia da Alternância foi viabilizada a
partir de agrupamentos estudantis de
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
10
acordo com seu pertencimento territorial,
sendo denominadas regionais. São tempos
e espaços de orientação coletiva das
pesquisas, organização de intervenções,
estudos da realidade, produção de fontes e
registros. As regionais são
(multi)territorializações dos sujeitos que
compõem a LEC. São polos de práticas,
vivências, centros de atividades culturais e
políticas, bases da produção
epistemológicas no campo da educação
popular, além de intervenções de diversas
naturezas (LEC, 2014
iv
). Cada regional era
coordenada e orientada por um ou mais
docentes, integrando as diversas atividades
realizadas no TE com o estudo da realidade
local, nas atividades do TC. Ao término de
cada etapa e nos momentos de
apresentação dos Trabalhos Integrados
(TI), essas atividades são sistematizadas e
socializadas, qualificando as pesquisas,
dando origem a novas sistematizações e
ações de intervenção nas localidades.
De acordo com o PPP, essa
caminhada implica para os sujeitos
populares do campo um ir e vir de suas
comunidades e a estreita relação entre
histórias de vida, produção e os espaços da
Universidade. Este ir e vir constitui a
Pedagogia da Alternância que, ao articular
dois espaços-tempos pedagógicos
formativos, implica não apenas numa nova
“metodologia”, mas todo um sistema
educativo diferenciado com os segmentos
populares do campo. Sob este aspecto, a
Pedagogia da Alternância dialoga com os
princípios-chave da educação popular, a
auto formação coletiva e libertadora e a
noção de que a educação pode ser
instrumento político de conscientização e
construção de um novo saber pelas classes
populares.
No campo pedagógico, para o senhor,
qual seria a corrente epistemológica
mais adequada para a abordagem na
Educação do Campo? Por quê?
R:. Creio que a corrente
epistemológica mais aprofundada na
Licenciatura em Educação do Campo na
UFRRJ foi a que se articula com a
Pedagogia do Movimento (CALDART,
2008)
v
e a Educação Popular / Pedagogia
do Oprimido (FREIRE, 1997, 1975)
vi
.
Nelas, compreendemos a formação de
professores do campo na sua estreita
relação com as experiências e práticas da
educação popular e agroecológicas,
desenvolvidas pelos movimentos sociais
do campo. Organizamos, inclusive, o livro:
Possíveis interfaces entre Educação do
Campo, educação popular e questões
agrárias
vii
(2017). De tantas práticas
pedagógicas que se configuram aquelas
mais intensas e articuladas, nossa
preocupação foi com as relações sociais
que se sobressaíram dos laços entre as
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
11
instituições, a diversidade cultural, as
identidades e memórias, a educação
popular, os movimentos sociais e as
políticas públicas de Educação do Campo,
em especial, o PRONERA, PROCAMPO e
o PRONACAMPO. Importante
conhecermos o percurso de consolidação
dessas políticas públicas no Brasil, pois
durante séculos a formação destinada às
classes populares do campo, vinculou-se a
um modelo “importado” de educação
urbana.
Na pedagogia do movimento,
constatamos que a partir da segunda
metade do século XX, com as Ligas
Camponesas e a defesa da educação
popular, os movimentos sociais
camponeses, fortalecidos por entidades
governamentais e não governamentais,
lutaram pelo acesso à terra e políticas
públicas que respeitassem os sujeitos do
campo e da cidade.
As mobilizações ganham força com a
presença de inúmeras entidades,
Universidades públicas, partidos políticos,
Movimento de Educação de Base (MEB),
Movimentos de Educação Popular,
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), Comissão Pastoral da Terra
(CPT), Confederação dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG), Escolas Famílias
Agrícolas (EFAs) e a frente de luta pela
reforma agrária, representada pelos
movimentos sociais.
Ela representa a capacidade de
articulação dos movimentos sociais e
aponta para crescente necessidade de
garantir projetos de educação popular
emancipadores, cuja organização tenha
como referência a cultura e o trabalho dos
grupos sociais camponeses. O debate
acerca da Educação do Campo deve,
portanto, entender a complexidade e
reafirmar a dimensão do campo brasileiro,
constituído por paisagens, lutas,
organicidade, desejos, histórias, memórias,
identidades e modos de vida defendidos
pelos sujeitos, individuais e coletivos, do
campo.
A Educação do Campo pode
representar a efetivação do projeto de
educação popular defendido pelos
trabalhadores/as camponesas, suas
histórias de vida, lutas e organizações. A
multiplicação, cada vez mais acentuada,
dos debates nos encontros regionais,
estaduais e nacionais, pode ser
fundamental no enfrentamento das
dificuldades de implementação das
políticas públicas. Nesse sentido, significa
afirmar a necessidade de compreender os
processos educativos na sua estreita
relação com os interesses políticos, sociais
e culturais dos grupos sociais. O desafio
dos movimentos sociais é integrar os
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
12
saberes camponeses à matriz curricular das
escolas. Para tanto, é imprescindível
desenvolver leituras críticas acerca dos
valores urbanos presentes na organização
curricular das escolas do campo.
Para (Arroyo & Fernandes, 1999, p.
31): “A escola tem que ser mais rica, tem
que incorporar o saber, a cultura, o
conhecimento socialmente construído)
viii
”.
Entendemos que a educação popular
dialoga com a organização da cultura e o
trabalho no campo, sintonizada com
projetos de valorização da relação entre
local e nacional. Ela rompe com as
políticas neoliberais relacionadas à
educação impessoal, mercadológica e
estabelecimento de metas. Segundo
Gadotti (2003):
A universidade precisa pensar
constantemente nessa direção. É
assim que ela se educa. Estudantes,
professores, ultrapassando os muros
para aprenderem junto à população,
não por curiosidade intelectual, mas
porque aprendem ensinando. Como
diz Darci Ribeiro, “orientar o jovem
universitário para a convivência com
os deserdados de sua própria geração
é também, uma forma de recuperá-lo
para o país real, de ganhá-lo para
uma vivência mais solidária através
da imersão nas condições de
existência do conjunto da população
a que se propõe servir”. Esta
universidade estaria fazendo
educação popular. (Gadotti, 2003, p.
120
ix
).
No que se refere à formação de
professores, como os cursos de
Licenciatura em Educação do Campo
entendem a práxis docente? Sobre os
professores licenciandos ou sobre os
professores que formam professores?
R.: A Licenciatura em Educação do
Campo na UFRRJ contribuiu com a prática
pedagógica através da análise crítica de
fatores culturais, políticos, econômicos e
sociais que influenciaram e influenciam as
diferentes etapas e processos históricos da
Educação do Campo no Brasil, resgatando
a formação docente e a construção
problematizadora do conhecimento. A
formação docente por área de
conhecimento utiliza a Pedagogia da
Alternância, para atender os anseios de
educadores, educandos e movimentos
sociais. Tem como intencionalidade a
promoção de estratégias que contribuam
para superar a fragmentação do
conhecimento, promovendo ações docentes
articuladas às transformações das escolas
do campo. Privilegia o compromisso com a
emancipação dos povos camponeses,
criando alternativas de organização do
trabalho escolar, enquanto prática social.
Esta formação pode contribuir com as
transformações que a rede escolar tanto
necessita, atendendo aos desejos e anseios,
entre outros, dos movimentos sociais de
luta pela terra. Nesse sentido, o educador
do campo é mais que um agente educativo.
Ele é componente essencial na
transformação da sociedade. Os
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
13
educadores do campo devem compreender
a relevância do seu papel na elaboração de
alternativas para organizar o trabalho
escolar, enquanto prática social. Segundo
(Caldart, 2002, p. 36):
Por isso defendemos com tanta
insistência a necessidade de política e
projetos de formação das educadoras
e dos educadores do campo. Também
porque sabemos que boa parte deste
ideário que estamos construindo é
algo novo em nossa própria cultura.
E que uma nova identidade de
educador que pode ser cultivada
desde este movimento por uma
educação do campo
x
.
A formação dos educadores/as do
campo pode significar a garantia de
práticas coerentes com os valores e
princípios defendidos pela Educação do
Campo. Ela reconhece as relações sociais
que ali se estabelecem e apontam o
território campesino, não como extensão
da cidade, mas de valorização das formas
de vida, desejos e trajetórias dos sujeitos,
individuais e coletivos. Por outro lado, não
se pode analisar tal formação somente na
perspectiva de valorização dos saberes da
comunidade. É preciso compreendê-la,
especialmente, na dimensão da autonomia
e organização de uma outra sociedade, que
enfrente as inúmeras formas de opressão
presente no campo brasileiro. Neste
sentido, as demandas que se fazem
presentes nas escolas do campo,
necessitam de educadores/as cuja formação
os possibilitem entender a conjuntura atual
da realidade camponesa. Um campo
pressionado pelo modelo econômico
excludente e que exige dos seu sujeitos
coletivos, educadores e lideranças dos
movimentos sociais, uma intensa
capacidade de resistência.
Os desafios enfrentados acerca da
transformação da educação superior em
mercadoria, somam-se a resistência,
precarização e aligeiramento das políticas
de formação docente no nível superior,
decorrentes das exigências atuais de
formação do trabalhador, a partir de novos
processos produtivos vigentes, estratégias
de gestão e organização do trabalho que,
por sua vez, impõem novas demandas à
educação e formação de seus profissionais.
As políticas de expansão das
Universidades, por exemplo, têm adotado
práticas que precarizam a qualidade da
formação humana, se considerarmos o
conceito de qualidade no sentido contra-
hegemônico, ou seja, a habilidade de
formar pessoas capazes de pensar
criticamente a produção do conhecimento
(Molina, 2016)
xi
.
Deste modo, a Licenciatura em
Educação do Campo na sua política de
formação docente tem as seguintes
demandas: seminários, fóruns e encontros
sobre Educação do Campo, na estreita
relação com a juventude rural, movimentos
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
14
sociais e os debates em torno da
agroecologia, agricultura familiar e
orgânica. Ela contribui com a formação
discente no contexto da Educação do
Campo, ressaltando o papel do educador na
seleção e organização dos conteúdos e
recursos didáticos utilizados.
Você poderia apresentar um balanço
geral desses cinco anos de criação,
implementação e desenvolvimento da
Educação do Campo na UFRRJ?
R:. Nosso objetivo principal foi
conhecer as possíveis relações entre os
movimentos sociais e as políticas públicas
de Educação do Campo, valorizando
culturas, histórias de vida, transformação
social, memórias e a formação de
educadores e educandos por área de
conhecimento. Os seminários, pesquisas e
projetos vinculados à Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ,
contribuíram decisivamente para realização
desse trabalho. Por outro lado, essencial
reafirmar a urgência da implementação de
políticas que enfrentem a altíssima
rotatividade dos docentes nas escolas do
campo, além da formação continuada dos
educadores, considerando os princípios e
especificidades da Educação do Campo.
Entendemos que a educação popular pode
colaborar para superar a precariedade dos
muitos espaços campesinos.
O respeito pelos saberes do campo
orientou toda organização e funcionamento
da Licenciatura em Educação do Campo
nesses 5 anos, zelando pela flexibilidade e
possibilidades de revisão das atividades
propostas, num projeto coerente com a
realidade de vida das pessoas. Nosso
horizonte foram as relações sociais
concretas e a materialização das propostas
políticas e pedagógicas em questão, em
oposição à generalização dos aspectos
particulares. Sendo assim, faço aqui alguns
questionamentos? Qual a real possibilidade
de implementação, em nível nacional, das
políticas públicas de Educação do Campo?
Quais as relações políticas, sociais e
pedagógicas possíveis, a despeito das
negações e adversidades, historicamente
acumuladas, acerca da educação popular?
Que práticas de leituras e escritas circulam
nas escolas do campo? Que usos e funções
elas possuem? É possível ir além dos
espaços tradicionais e conservadores da
escola regular? Educadores e educandos se
mostram preocupados e flexíveis no
trabalho com o novo? Contribuem na
transformação dos educandos em agentes e
sujeitos da história? Ou atuam, apenas,
como meros participantes? Como enfrentar
tantas questões? (Molina
xii
, 2014; Souza
xiii
,
2012).
Consideramos as histórias de vida de
educadores e educandos, memórias e vida
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
15
cultural, constitutivas de valores, conflitos
de ideias, lutas pelo reconhecimento
identitário e novas formas coletivas e
democráticas de relacionamentos. Quero
salientar que a produção do conhecimento
pautada nos dados coletados e nas
observações efetuadas não são isentas de
valores. A construção crítica e coerente do
saber não é neutra. Assim, a história
pessoal do autor permeou todo o
desenvolvimento desse trabalho.
Esperamos, dessa forma, estimular a
produção de leituras e reflexões que
contemplem a formação de educadores do
campo. Nesse processo de construção
histórica prevaleceu o respeito às
diferenças e a valorização da identidade
cultural dos povos camponeses, propondo
uma educação inclusiva, questionadora e
democrática, presente em diversas
experiências de educação popular
vinculadas à luta pela terra. Por fim,
importante registrar nossa defesa às
políticas públicas que contribuam na
formação de educadores para as escolas do
campo brasileira. Sugiro aos leitores a
continuidade desses estudos com o
objetivo de compreender a relevância de
tais políticas no fortalecimento das
relações com os movimentos sociais.
Para finalizar, o senhor se considera um
militante, um teórico, um pensador ou
gestor quando o assunto é Educação do
Campo? O que o senhor espera para o
futuro da Educação do Campo no
Brasil?
R:. Eu me considero um militante
das políticas públicas de Educação do
Campo. Compreendo que a sociedade
brasileira construiu no seu imaginário uma
estreita e injusta ligação do campo como
lugar do atraso, contribuindo para omissão
do Estado em relação às políticas públicas
de educação e demais direitos dos povos
camponeses. É de consenso na sociedade
brasileira que a exclusão do direito à terra
e educação contribuem para elevadas
distorções sociais e aumento exagerado da
violência. Com tantos problemas, até onde
vai o direito de ir e vir nas escolas do
campo? Esses desafios precisam ser
enfrentados por políticas públicas,
educadores, educandos e movimentos
sociais. Importante mexer com o
imaginário da sociedade e valorizar os
sujeitos de direito, individuais e coletivos,
do campo, enquanto agentes da própria
libertação. Rever os significados do ato
político de educar, a intervenção crítica,
debates, reflexões e ações que considerem
a educação popular e as efetivas
transformações sócio-educacionais.
Entendemos que a Educação do
Campo emancipadora estabelece estreita
relação com os valores da dignidade
humana, confiança, solidariedade,
compreensão coletiva e valorização das
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
16
histórias de vida dos sujeitos camponeses,
incorporando espaços tempos
silenciados. Ela dialoga com a educação
popular, os movimentos sociais e a
Pedagogia da Alternância, além da
segurança alimentar, desenvolvimento
sustentável, agricultura orgânica e
agroecológica. São campos do saber que se
aproximam e devem ser explorados por
educadores e educandos nas escolas do
campo, nas comunidades e ambientes
familiares.
Uma parte considerável da população
brasileira vive, trabalha e resiste no meio
rural, embora, a quantidade e qualidade das
pesquisas sobre tal temática, ainda seja
insuficiente. A realidade da agricultura
familiar no Brasil e sua relação com os
assentamentos, acampamentos e territórios
quilombolas, necessita de estudos e
aprofundamentos teóricos. Segundo os
movimentos sociais do campo, é urgente a
defesa de uma agricultura familiar ligada
às questões da agroecologia, semente
crioula e a presença constante das famílias
na consolidação das escolas do campo.
Importante ainda, romper com as inúmeras
dificuldades no processo de
implementação das políticas públicas de
Educação do Campo, dentre elas: as
escolas multisseriadas com ausência de
docentes e pessoal de apoio, infraestrutura
precária, estradas intransitáveis, transportes
inadequados e o enorme descaso das
secretarias, municipais e estaduais, na
organicidade da Educação do Campo.
Ainda é possível constatar cursos
aligeirados, formação de educadores e
educandos preocupados apenas com a
lógica do mercado, conteudistas e
superficiais, currículos tradicionais e
improvisados, péssimo acesso e
permanência dos jovens e adultos nas
escolas do campo, evasão escolar e espaço
físico com inadequada infraestrutura para o
bom funcionamento das escolas. A
Educação do Campo no Brasil,
historicamente tratada como educação
rural, foi por muito tempo subjugada aos
interesses das classes privilegiadas, reflexo
das adaptações, valores e princípios das
escolas urbanas.
Mesmo com tantas interrogações,
percebemos que as atividades
desenvolvidas nas escolas do campo têm a
sensibilidade de trabalhar com práticas de
leitura e escrita relacionadas às
problemáticas da luta pela terra, formação
política e histórias de vida dos estudantes.
Interage com a produção histórica do
conhecimento nos diferentes tempos e
espaços, respeitando as diversas formas de
linguagens e interpretações. As escolas do
campo podem ser protagonistas na
promoção do desenvolvimento das
comunidades camponesas, numa
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
17
perspectiva contra-hegemônica, de
socialização das novas gerações e
produção emancipadora do conhecimento,
valorizando a agricultura familiar,
religiosidades, formação étnica, respeito à
historicidade, memória coletiva, identidade
camponesa e os saberes sociais. Todo um
processo de construção que vai além das
finalidades, tradicionalmente
conservadoras, reservadas à escola.
Importante salientar que tais gargalos
não diminuem as lutas e resistências dos
sujeitos camponeses organizados. Apesar
do retrato atual, as políticas públicas
educacionais podem atender os anseios do
campo, considerando o diálogo com as
diversas esferas da gestão do Estado,
movimentos e organizações sociais do
campo brasileiro. Pode ainda contribuir na
consolidação dos diferentes saberes
oriundos das escolas do campo, através da
diversidade étnico-cultural, o
reconhecimento do direito à diferença, a
construção de bases epistemológicas que
busquem a superação da dicotomia campo-
cidade, além das articulações políticas,
sociais e culturais presente na diversidade
dos movimentos sociais. Rompe-se com a
construção equivocada de estereótipos
acerca dos sujeitos, individuais e coletivos,
do campo. Definitivamente, os camponeses
não são ingênuos, ignorantes, dependentes
e atrasados. A mudança de paradigmas na
Educação do Campo é essencial. Prescinde
de novos olhares, fundamentação teórico-
prática e recriação do sujeito histórico.
Acreditamos no enfrentamento
histórico realizado por educadores,
educandos e movimentos sociais às
estratégias de repetições, repasses
descontextualizados e ao conformismo da
escola tradicional. Nessa conjuntura, os
sujeitos do campo estarão (e estaremos
todos nós) contribuindo na transformação
dos educandos em agentes e sujeitos da
história. Serão eles, os protagonistas da
emancipação libertadora e não, apenas,
meros participantes. As Universidades
públicas desse país, secretarias municipais
e estaduais de educação tem condições de
construir, coletivamente, projetos
emancipadores que elevem a autoestima,
criticidade e autonomia de educadores e
educandos. Obviamente, essas questões
não estão desvinculadas da capacidade de
mobilização social e política que os
sujeitos do campo constroem no seu
íntimo. O reconhecimento identitário e as
histórias de vida dos atores devem ser
fortalecidas com as novas conquistas e a
capacidade de propor, questionar, dialogar
e refletir sobre as relações de poder e
saberes historicamente estabelecidos.
Os movimentos sociais do campo,
enquanto sujeitos coletivos, contribuem
com as Universidades, secretarias estaduais
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
18
e municipais de educação, formando
educadores e educandos que respeitem as
identidades dos trabalhadores rurais,
lideranças comunitárias e simpatizantes da
luta pela terra, numa perspectiva de
valorização das novas experiências de
produção agroecológica e cooperativa.
Acreditamos que a valorização das
memórias, identidades e histórias de vida
dos sujeitos, contribuem no fortalecimento
das ações de formação política e
continuada, enfraquecendo os mecanismos
de opressão e injustiças sociais. Quando
educadores e educandos pensam a si
mesmos, enquanto protagonistas de suas
histórias, outros olhares e reflexões são
possíveis. Educa-se para cidadania,
conscientização dos problemas e
enfrentamento das dificuldades. Quando
ação e reflexão são organizadas com o
objetivo de transformar a realidade dos
sujeitos camponeses, a práxis libertadora
pode contribuir na consolidação das
políticas públicas de Educação do Campo.
i
Bicalho, R. (2007). Alfabetização no MST:
experiências com jovens e adultos na Baixada
Fluminense. Campinas: Editora Komedi. 2ª edição.
ii
Bicalho, R. (2008). Projeto Político Pedagógico
do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra: trajetória de educadores e lideranças.
Campinas: Editora Komedi.
iii
Molina, M. C., & Jesus, S. M. S. A. (2010).
Contribuições do PRONERA à Educação do
Campo no Brasil Reflexões a partir da tríade:
Campo Política Pública Educação. In Santos, C.
A., Molina, M. C., & Jesus, S. M. S. A. (Orgs.).
Memória e história do Pronera: contribuições para
a educação do campo no Brasil (pp. 29-63).
Brasília: Ministério do desenvolvimento Agrário.
iv
UFRRJ Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (2014). PROJETO Político Pedagógico da
Licenciatura em Educação do Campo. Seropédica,
RJ.
v
Caldart, R. S. (2008). Pedagogia do Movimento
Sem Terra: escola é mais que escola. SP:
Expressão Popular.
vi
Freire, P. (1997). Pedagogia da Autonomia:
Saberes necessários à prática educativa. SP: Paz e
Terra.
vii
Bicalho, R. (2017). Possíveis interfaces entre
educação do campo, educação popular e questões
agrárias. Curitiba, Editora Appris.
viii
Arroyo, M. G., & Fernandes, B. M. (1999). A
educação básica e o movimento social do campo
Brasília, DF: Articulação Nacional por uma
Educação Básica do Campo. Coleção Por uma
Educação Básica do Campo, n° 2.
ix
Gadotti, M. (2003). Boniteza de um sonho:
ensinar-e-aprender com sentido. Novo Hamburgo:
Feevale.
x
Caldart, R. (2002). Por Uma Educação do Campo:
traços de uma identidade em construção. In
Kolling, E. J., Cerioli, P. R., & Caldart, R. S.
(Orgs.). Educação do Campo: identidade e
políticas públicas (pp. 25-36). Brasília. Coleção Por
Uma Educação do Campo, n. 4.
xi
Molina, M. C. (2016). Políticas de Expansão da
Educação Superior no Brasil: Sub 7 - Analisar a
expansão da Educação Superior do Campo, com
destaque para a área de Formação de Educadores.
In XXIV Seminário Nacional Universitas / BR.
Dívida blica e educação superior no Brasil.
Maringá / PR.
xii
Molina, M. C. (2014). Licenciaturas em
Educação do Campo e o Ensino de Ciências
Naturais: desafios à promoção do trabalho docente
interdisciplinar. MDA / Série NEAD Debate 23.
xiii
Souza, M. A. (2012). Educação do Campo:
propostas e práticas pedagógicas do MST.
Petrópolis, RJ: Vozes.
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de Janeiro: relato da experiência de implementação da Licenciatura em
Educação do Campo na UFRRJ
Tocantinópolis/Brasil
v. 5
e9386
10.20873/uft.rbec.e9386
2020
ISSN: 2525-4863
19
Informações da entrevista / Interview Information
Recebido em : 24/05/2020
Aprovado em: 29/06/2020
Publicado em: 02/07/2020
Received on May 24th, 2020
Accepted on June 29th, 2020
Published on July, 02nd, 2020
Conflitos de interesse: O autor declarou não haver
nenhum conflito de interesse referente a esta entrevista.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
George Leonardo Seabra Coelho
http://orcid.org/0000-0002-3166-4008
Como citar esta entrevista / How to cite this interview
APA
Coelho, G. L. S. (2020). Educação do Campo no Rio de
Janeiro: relato da experiência de implementação da
Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ. Rev.
Bras. Educ. Camp., 4, e9386.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e9386
ABNT
COELHO, G. L. S. Educação do Campo no Rio de
Janeiro: relato da experiência de implementação da
Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ. Rev.
Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 4, e9386, 2020.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e9386