Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e8533
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
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2021
ISSN: 2525-4863
1
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O processo histórico-social da Terra Indígena Guarita
Juliane Paprosqui
1
,
Janete Webler Cancelier
2
,
Graciela Gobbi Guterra
3
,
Queli Rejane da Silva Konzgen
4
,
Vagner Guimarães Ramos
5
1, 2, 3, 4, 5
Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Pró-Reitoria de Graduação/Administração Central. Avenida Roraima n.
1000, cidade universitária, Camobi. Santa Maria - RS. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: juliane_paprosqui@hotmail.com
RESUMO. O presente estudo tem como objetivo geral conhecer
as especificidades do modo de ser Guarani, na Tekoá Ka’aguy
Porã (Aldeia Indígena Gengibre), localizada na Terra Indígena
Guarita, situada na região noroeste do Rio Grande do Sul. O
estudo é produto de uma disciplina do semestre de um curso
de Licenciatura em Educação do Campo, ofertado por uma
Universidade Federal na modalidade à distância. Para realizar a
pesquisa primeiramente foi realizada uma revisão bibliográfica
sobre a realidade indígena no Brasil, posteriormente uma
pesquisa documental buscando elementos sobre o processo
histórico de formação e organização da Terra Indígena Guarita,
através de observação direta, conversas informais e entrevistas,
resultando numa análise descritiva dos dados. Os resultados da
pesquisa possibilitaram conhecer o cotidiano e os modos de vida
do povo Guarani, identificando especificidades do modo de ser
Guarani na Tekoá Ka’aguy Porã, incluindo suas crenças, hábitos
alimentares e elementos da cultura material, colaborando desta
forma, com a formação do futuro licenciado que pode vivenciar
de perto um pouco da diversidade que possivelmente encontrará
na sala de aula. Por meio da observação e da interação com o
objeto da pesquisa foi evidenciado também a relação deste povo
com a natureza e o meio ambiente.
Palavras-chave: pesquisa em educação, cultura, terra indígena,
formação de professores.
Paprosqui, J., Cancelier, J. W., Guterra, G. G., Konzgen, Q. R. S., & Ramos, V. G. (2021). O processo histórico-social da Terra Indígena Guarita...
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The historical-social process of the Guarita Indigenous
Land
ABSTRACT. The present study has as general objective to
know the specificities of the Guarani way of being, in Tekoá
Ka'aguy Porã (Indigenous Village Gengibre), located in the
Terra Indígena Guarita, located in the northwest region of Rio
Grande do Sul. The study is the product of a discipline of the 4th
semester of a Licentiate Course in Rural Education, offered by a
Federal University in the distance modality. In order to carry out
the research, a bibliographic review on the indigenous reality in
Brazil was carried out, later on, a documentary search seeking
elements on the historical formation and organization process of
the Guarita Indigenous Land, through direct observation,
informal conversations and interviews resulting in a descriptive
analysis of the Dice. The results of the research made it possible
to know the daily life and the ways of life of the Guarani people,
identifying specificities of the way of being Guarani in Tekoá
Ka'aguy Porã, including their beliefs, eating habits and elements
of material culture, thus collaborating with the formation of the
future graduate who can experience up close a little bit of the
diversity that he will possibly find in the classroom. Through
observation and interaction with the research object, the
relationship of these people with nature and the environment
was also evidenced.
Keywords: research in education, culture, indigenous land,
teacher training.
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El proceso histórico-social de la Tierra Indígena Guarita
RESUMEN. El presente estudio tiene como objetivo general
conocer las especificidades de la forma de ser guaraní, en Tekoá
Ka'aguy Porã (Pueblo Indígena Gengibre), ubicado en la Terra
Indígena Guarita, ubicada en la región noroeste de Rio Grande
do Sul. El estudio es el producto de una disciplina del 4to
semestre de un Curso de Licenciatura en Educación Rural,
ofrecido por una Universidad Federal en la modalidad a
distancia. Para llevar a cabo la investigación, se realizó una
revisión bibliográfica sobre la realidad indígena en Brasil, luego,
una búsqueda documental buscando elementos sobre el proceso
histórico de formación y organización de la Tierra Indígena
Guarita, a través de observación directa, conversaciones
informales y entrevistas que resultaron en un análisis descriptivo
del Dado. Los resultados de la investigación permitieron
conocer la vida cotidiana y las formas de vida de los guaraníes,
identificando las especificidades de la forma de ser guaraníes en
Tekoá Ka'aguy Porã, incluidas sus creencias, hábitos
alimenticios y elementos de la cultura material, colaborando así
con la formación del futuro graduado que puede experimentar de
cerca un poco de la diversidad que posiblemente encontrará en
el aula. A través de la observación y la interacción con el objeto
de investigación, también se evidenció la relación de estas
personas con la naturaleza y el medio ambiente.
Palabras clave: investigación en educación, cultura, tierras
indígenas, formación del profesorado
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Introdução
Atualmente no Brasil, o povo
Guarani
i
é composto por três grandes
grupos da língua Guarani, os Mbyá, os
Ñandeva e os Kaiowá, integrando a família
linguística Tupi-Guarani e o tronco tupi,
que se caracteriza por línguas que não são
mais faladas, mas, que deram origem a
diversas outras faladas na atualidade dos
indígenas (Schaden, 1974). Além de
diferenças linguísticas entre os três grupos,
registram-se diferenças socioculturais,
enfatizadas por seus próprios integrantes.
Ao final da primeira década do
século XXI, a população Guarani Mbyá no
Rio Grande do Sul era de
aproximadamente 2.000 pessoas,
distribuídas em aproximadamente 35
lugares de ocupação. Em virtude de seus
próprios modos de constituição do
território, com frequência os grupos
familiares deslocam-se em “busca da terra
sem mal”, fato que se mostra como
constante na vida do povo Guarani, por
entenderem que o território, enquanto
espaço cartográfico e geográfico, é
fragmentado e compartilhado por
diferentes sociedades em contraposição das
aldeias que, não devem abrigar outros seres
humanos, ou seja, uma aldeia deve conter
recursos naturais preservados permitindo a
privacidade da comunidade. O território
dos Guaranis, então, remete a busca
constante por espaços que atendam às suas
demandas socioculturais.
Sendo assim, ao longo do processo
de ocupação do Rio Grande do Sul, o povo
Guarani ocupava desde o litoral até a
fronteira oeste e parte da região norte.
Praticavam a agricultura, de acordo com os
costumes indígenas, na qual os homens
cuidavam do solo e as mulheres cuidavam
das sementes, plantavam e colhiam.
Segundo os apontamentos de Wizneiwsky
e Kaufmann (2018), os mesmos
cultivavam, principalmente o algodão,
abóbora, mandioca, milho, amendoim,
feijão e batata-doce, e também praticavam
a pesca e a caça. Da floresta colhiam frutos
silvestres e a erva-mate, sendo o chimarrão
e o churrasco herança atribuída e esse
grupo.
Os povos Guarani, ao longo dos
séculos, foram lentamente suprimidos, em
decorrência dos ataques dos Bandeirantes,
guerras guaraníticas e, posteriormente, a
mestiçagem. Entre os povos indígenas
presentes no estado do Rio Grande do Sul
a maioria pertence à etnia Kaingang,
havendo também a presença de povos
Guarani em menor proporção. Estes vivem
em áreas denominadas oficialmente
“Terras Indígenas”. Segundo a Fundação
Nacional do Índio FUNAI (2019)
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existem 27 áreas em todo o estado, porém
apenas 13 devidamente demarcadas.
Nos reduzidos espaços de terra que
ainda lhes restaram, o povo Guarani
vivencia sua cultura, crenças, língua e
tradições, em íntima relação com o
sagrado, que lhes dá esperança de viver,
apesar de toda uma existência de
sofrimento e perdas. Os povos indígenas
resistem em distintos espaços-tempos,
mesmo sob influências e imposições da
sociedade dominante, de aparatos de
Estado, leis e da cultura excludente, em
relação ao indígena (Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul, 2010).
Tendo em vista a importância que o
tema requer, o artigo que se apresenta é
fruto de uma investigação realizada por
professores e uma licencianda do curso de
Licenciatura em Educação do Campo,
ofertado pela Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM) e em parceria com a
Universidade Aberta do Brasil (UAB),
buscando entender o processo histórico-
social da formação Guarani Mbyá e
conhecer as especificidades do modo de
ser Guarani na Tekoá Ka’aguy Porã
(Aldeia Indígena Gengibre), localizada na
Terra Indígena Guarita, no município de
Erval Seco/RS. Os estudos investigativos,
como o que se apresenta aqui, são salutares
para a formação da prática pedagógica
futura do educador do campo. A
importância e justificativa deste estudo se
dão pela relevância, principalmente quando
se trata de relatar o modo de ser de um
povo, pois o licenciado em Educação do
Campo poderá atuar em escolas do espaço
rural que atendam aos mais diversos povos
tradicionais. Trata-se de uma oportunidade
única para compreender, inclusive, a nossa
própria identidade.
Além disso, busca-se demonstrar o
processo histórico de formação e
organização da Terra Indígena Guarita,
observando e documentando aspectos da
cultura, da língua, dos costumes, das
tradições, das relações com outras etnias,
dos conhecimentos e saberes produzidos
pelo povo Guarani Mbyá. Também é
importante compreender as relações de
tempo, espaço, cultura e sua influência na
identidade indígena, conhecendo e
valorizando a relação de respeito à
natureza e a sabedoria dos mais velhos na
transmissão de conhecimento através da
oralidade e das vivências cotidianas.
Assim sendo, percebe-se o quanto é
importante descrever estes aspectos, para
promover a quebra do estigma que a
sociedade tem do indígena, e ainda poderá
subsidiar educadores em relação aos povos
tradicionais em suas práticas pedagógicas
cotidianas. O arcabouço teórico se limita
em alguns autores, tais como: Mello,
Altenhofen e Tommaso, Moore (2011),
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Constituição Federal, dentre outros, pois,
devida a pouca produção teórica, optou-se
por manter os mais relevantes encontrados.
Metodologia
Quanto aos caminhos teórico-
metodológicos, primeiramente foi
realizada a provação inicial aos estudantes
do curso de Licenciatura em Educação do
Campo, para que realizassem a pesquisa
em uma comunidade obrigatoriamente do
espaço rural buscando identificar dentre
outros aspectos a cultura, como se
organiza, a posição geográfica da mesma
como se dá a relação da comunidade com a
natureza, etc. Escolhida a comunidade e a
partir desses elementos foi realizada uma
revisão bibliográfica para entender através
dos aportes teóricos trazidos, a realidade
do indígena no Brasil, o povo indígena
Guarani para posteriormente chegarmos a
terra indígena “Guarita”.
No segundo momento recorreu-se a
pesquisa documental, a qual elucidou os
dados referentes ao processo histórico de
formação e organização da Terra Indígena
Guarita, resultando em uma análise
descritiva. Os dados qualitativos foram
obtidos pelo trabalho de campo na Aldeia
Indígena Gengibre no ano de 2018,
utilizando como técnicas entrevista
semiestruturada e a observação
participante.
A entrevista se deu, basicamente,
com o Cacique Sandro Silva e foram feitas
perguntas que, versavam sobre a
organização da aldeia, os costumes, a
cultura e os processos históricos de
consolidação do referido lugar.
A Aldeia Gengibre localizada na
Terra Indígena Guarita, objeto deste
estudo, está situada na região noroeste do
Rio Grande do Sul, ocupando parte do
território dos municípios de Tenente
Portela, Redentora e Erval Seco.
Atualmente, abrange uma área de
23.406,87 hectares, constituindo o maior
território indígena do estado. Em seguida,
a Figura 3, possibilita a visualização dos
municípios que abrangem a Terra Indígena
Guarita.
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Figura 3 Mapa dos limites territoriais da Terra Indígena Guarita.
Fonte: Construído a partir de IBGE (2005) e FUNAI (2017).
Realidade indígena no Brasil
Os indígenas fazem parte do
processo histórico de formação sócio
espacial do Brasil. Atualmente estão
presentes diversas etnias, cada uma com
características próprias, entre as quais, a
língua. O Brasil, em mais de 500 anos de
história, desde sua ocupação apresenta uma
história de contatos linguísticos e culturais
entre diferentes povos (Mello, Altenhofen
& Tommaso, 2011). O primeiro contato
registrado se deu segundo Moore (2011),
com indígenas Tupinambás, na costa leste
do território brasileiro; onde portugueses e
indígenas buscavam comunicar-se de
alguma forma, seja por meio de gestos ou
língua um do outro. Esse contato nem
sempre ocorreu de forma harmoniosa,
resultando muitas vezes no confronto
direto, motivado pela discriminação,
incompatibilidade e luta pela terra.
Com a aprovação da Constituição de
1988, direitos importantes foram
conquistados, garantindo, aos povos
indígenas, o respeito de sua organização
social, costumes, línguas, crenças,
tradições, e direitos originários sobre as
terras que, tradicionalmente, ocupavam,
direito a uma educação específica e
diferenciada, ao reconhecer o uso de língua
materna e processos próprios de
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aprendizagem. (Artigo 210-231, BRASIL,
1988).
Por meio da Resolução CEB/CP
03/99, foram instituídas as Diretrizes
Curriculares Nacionais (DCNs) para o
funcionamento das escolas indígenas,
observando o que remonta o Art. 2.
Parágrafo Único. “A escola indígena será
criada em atendimento à reivindicação ou
por iniciativa de comunidade interessada,
ou com a anuência da mesma, respeitadas
suas formas de representação”.
De acordo com os Parâmetros
Curriculares Nacionais (1997, p. 30),
podemos observar que: “... o
estabelecimento de escolas indígenas, com
proposta pedagógica, organização
administrativa e didáticas próprias, atende
a uma exigência constitucional, traz
enriquecimento pedagógico e introduz
exigências adicionais na estruturação do
sistema nacional de educação”
Neste sentido, a educação não
indígena, mas voltada para os povos
indígenas, é garantida através da luta pelo
acesso à educação que se adeque a
realidade e a cultura destes povos. Isso é
observado quando a proteção das
comunidades indígenas vai além da
Constituição Federal de 1988, no Estatuto
do Índio, por exemplo, em seu artigo
prevê que a União, Estados e Municípios
devem proteger e preservar o direito das
comunidades indígenas, respeitando suas
peculiaridades assegurando a livre escolha
dos seus meios de vida e subsistência.
Ainda, o artigo 47 assegura o respeito ao
patrimônio cultural dos povos indígenas,
seus valores artísticos e meios de
expressão.
Desta maneira, percebe-se que os
povos indígenas, além de deter o direito de
utilizar a sua língua materna, também
podem desenvolver processos pedagógicos
e tradicionais intrínsecos a sua cultura.
Porém, apesar de existirem leis que
garantam a permanência/existência destes
povos, o que se vivencia cotidianamente é
um total desrespeito a cultura, tradição,
modo de vida e aos direitos arduamente
conquistados. E muitos são os locais onde
o sangue deste povo é derramado em nome
de uma globalização excludente,
xenofóbica que concebe o meio ambiente
apenas como moeda de troca. Nesse
ínterim, a educação ocupa um lugar de
destaque, saber de seus direitos é essencial,
porém, também é essencial que cada um
desempenhe seu papel, pois, de nada
adianta ter educação voltada para esses
povos, se não temos sua garantia da
continuidade.
Povo indígena Guarani
A população Guarani, em 2008,
soma cerca de 51 mil pessoas em todo
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território brasileiro, divididos em três
etnias: Mbyá, Ñandeva e Kaiowá ( Instituto
Socioambiental). De acordo com a FUNAI
(2017), na Região Sul, estima-se que
existam cerca de sete mil índios Guarani
Mbyá.
É difícil mensurar, ao certo, quantos
indígenas habitam as terras do Brasil. Isto
se deve a sua constante migração,
dificuldade de acesso em algumas aldeias e
a aversão por parte dos guaranis aos
recenseadores, tornando-se difícil chegar a
um número populacional exato existindo
muitas variações de números, de acordo
com a instituição que realiza a pesquisa.
Segundo Mota e Assis (2008, p. 80), vivem
no Brasil, aproximadamente 220 povos
indígenas que falam em torno de 170
línguas diferenciadas. Por sua vez, o Censo
Demográfico de 2010 apresenta dados
mais recentes e atualizados, onde aponta a
existência de 896,9 mil indígenas,
distribuídos em 305 etnias e falantes de
274 línguas e/ou dialetos diferentes.
Conforme o linguista Aryon
Dall’Igna Rodrigues (1986), o Mbyá é um
dialeto do idioma Guarani, que pertence à
família Tupi-Guarani, do tronco
Linguístico Tupi. As variações na
linguagem são observadas na pronúncia e
nas sílabas tônicas, mas, sobretudo no
vocabulário e na sintaxe, de acordo com
sistemas culturais próprios dos falantes
Guarani.
O povo Guarani Mbyá mantém sua
língua viva, o sistema de transmissão oral
se apresenta como o mais eficaz na
educação das crianças, na disseminação de
conhecimentos e na comunicação com
outras aldeias, constituindo-se a língua o
mais forte elemento de sua cultura e
identidade. Estes povos estão presentes em
várias aldeias da região oriental do
Paraguai, na Argentina e no Uruguai. No
Brasil, encontram-se em aldeias situadas
no interior e no litoral dos estados do sul e
alguns em São Paulo, Rio de Janeiro e
Espírito Santo junto à Mata Atlântica,
alguns na região norte do país no estado do
Tocantins. O nome Mbya foi traduzido por
“gente” (Schaden, 1974), muita gente
num só lugar” (Dooley, 1982).
Para o povo Guarani a “busca da
terra sem mal” é uma constante em suas
vidas, pois consiste em procurar por uma
terra boa, onde ‘se produzindo tudo dá’,
terra de abundância de recursos naturais,
beleza e harmonia. Onde todos possam
viver plenamente em solidariedade,
equidade, amor e justiça.
A partir das leituras realizadas,
evidencia-se que o povo Guarani
desenvolveu de forma harmoniosa o
relacionamento com a natureza e o meio
ambiente, além de possuírem uma grande
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habilidade para pesca, caça e coleta de
alimentos. Possuem uma estreita relação
espiritual e tica com a natureza. Sendo a
terra considerada um espaço de vida e
cultura, de uso coletivo.
Terra Indígena Guarita
ii
Segundo Becker (1976, p. 48),
“Guarita consta como tribo existente no
município de Cruz Alta. Abrigava vários
toldos de índios, tendo como Paibeni, ou
‘Grande Chefe’, ao idoso “Fongue”, no
ano de 1848”. O local foi reconhecido
como Terra Indígena, somente em meados
do século XX, no ano de 1908, quando o
Governo do Estado do Rio Grande do Sul
começou a demarcar as áreas indígenas
existentes.
A Terra Indígena Guarita possuía
área total de 23.183 hectares oficializada
em 1918, sendo redemarcada em 1997.
Atualmente sua extensão é de 23.406,87
hectares
(http://www.portalkaingang.org/index_gua
rita.htm). A demarcação da área foi um
marco importante para os que habitavam
aquele território e que enxergavam suas
terras sendo ameaçadas pelas invasões de
agricultores.
O nome Guarita faz menção ao Rio
Guarita, que limita as terras da reserva com
os não índios. Na Terra Indígena Guarita,
vivem dois grupos indígenas: os Kaingang
e os Guarani, conforme retrata a Figura 1:
Figura 1 Bandeira da Terra Indígena Guarita.
Fonte: Página da Programação da Semana do Índio
na Terra Indígena do Guarita (2018).
iii
A Terra Indígena Guarita estrutura-se
em 17 (dezessete) setores
iv
, sendo 16
Kaingang e um Guarani, onde situa-se a
Aldeia Gengibre (Tekoá Ka’aguy Porã),
no município de Erval Seco. Segundo o
Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística IBGE (2010), na Terra
Indígena Guarita habitam cerca de sete mil
indígenas, a grande maioria Kaingang. As
línguas faladas são o Kaingang, Guarani e
o português brasileiro. As duas etnias
apresentam muitas diferenças entre si, não
somente na língua, mas na moradia, nos
costumes, nas tradições, na organização
política e social. Mesmo que no passado
tenha ocorrido, de forma geral, algumas
desavenças entre os povos (Schmitz,
2006), atualmente o relacionamento entre
as duas etnias é aparentemente pacífico.
A área de estudo situa-se na região
noroeste do Rio Grande do Sul,
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abrangendo os municípios de Tenente
Portela, Redentora e Erval Seco. Grande
parte do território ocupado pelos
Kaingang, margeia a rodovia ERS 330. Já
a área ocupada pelos Guarani, margeia o
Rio Guarita. Neste território concentra-se a
maior reserva de mata nativa da Terra
Indígena Guarita. A Figura 2 possibilita
visualizar a configuração da Terra Indígena
Guarita.
Figura 2 Imagem de satélite da Terra Indígena Guarita.
Fonte: Google Earth, 2019.
Resultados e discussão
O primeiro contato com a área
pesquisada ocorreu através do Cacique
v
, o
qual nos recebeu muito bem em sua
moradia e nos acompanhou durante todo o
período que estivemos na Aldeia. Este se
sentiu honrado por estar sendo procurado
para realizar este estudo, que teve por
objetivo observar e documentar os aspectos
da cultura, da língua, dos costumes, das
tradições, dos conhecimentos e saberes
produzidos pelo povo Guarani Mbyá que
vive na Tekoá Ka’aguy Porã (Lindas
Matas). Após explicar para o Cacique os
objetivos do estudo, ele pediu permissão ao
Karaí
vi
para que o estudo pudesse ser
realizado na comunidade.
Na Terra Indígena Guarita, no setor
Gengibre, vivem cerca de 33 (trinta e três)
famílias, totalizando aproximadamente 200
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(duzentos) indígenas da etnia Guarani
Mbyá.
A área territorial da Tekoá Ka’aguy
Porã é composta de aproximadamente 9
mil hectares e está inserida dentro do
Bioma Mata Atlântica. Observou-se, a
partir do campo (2018), que ainda estão
presentes árvores de grande porte das mais
diferentes espécies, inclusive araucárias
nativas. Segundo relato dos indígenas, é
possível encontrar na mata pequenos
animais silvestres como: tatu, graxaim,
quati, macacos, gato do mato, lebre, veado,
jaguatirica. Também diferentes espécies de
aves como: tucanos, gralhas amarelas,
jacus, etc. Quando indagado sobre a
existência de onças dentro da reserva, o
cacique afirmou que:
Nunca vi, mas também nunca fui no
centro da mata, mas tem pessoas que
dizem que tem onças na mata. Daqui
a alguns dias vai vir uma equipe de
ambientalistas instalar câmeras de
monitoramento no interior da mata
para registrar quais espécies temos.
Conforme constatado, os indígenas
vivem praticamente dentro da mata,
distante dos juruá
vii
e dos demais setores,
entre os quais estão os índios de etnia
Kaingang, que possuem uma cultura-
língua distinta dos guarani. Quando
precisam de algo na cidade, o povo
indígena vai até a cidade de Miraguaí, que
está distante 30 km da aldeia. Segundo o
cacique, um dos pontos mais visitados em
Miraguaí é o escritório da FUNAI.
A organização político-social da
aldeia acontece através do Cacique, essa
liderança pode ser masculina ou feminina.
O cacique é considerado vitalício, porém
pode deixar a qualquer momento o seu
cargo em virtude de pedido, problemas,
doença ou velhice, assim como pode ser
retirado do cargo, por mau comportamento.
Em períodos anteriores a Tekoá Ka’aguy
Porã já foi liderada por uma mulher.
A principal família que vive na
Tekoá Ka’aguy Porã é a do Karaí Élio
Fernandes, que é avô do atual Cacique.
Conforme levantamento realizado, os
primeiros habitantes do setor Gengibre
foram a família do Karaí, que veio da
Argentina, fazendo moradia em diversos
lugares dentro da Terra Indígena Guarita,
até chegar a formar a Tekoá Ka’aguy Porã.
Mais recentemente, em meados de 2009,
Sandro Silva, deslocou-se da Terra
Indígena Mato Preto em Getúlio Vargas
para viver mais próximo de seus avós.
“Vim para trabalhar e lutar pela
comunidade”, diz Sandro.
Lembrando que Argentina, Brasil e
Paraguai, compõem o espaço transitado
por indígenas desse tronco. A mobilidade é
uma das principais características do povo
Guarani. Segundo Schmitz (2006), no
Brasil, os guarani se consideram parentes e
Paprosqui, J., Cancelier, J. W., Guterra, G. G., Konzgen, Q. R. S., & Ramos, V. G. (2021). O processo histórico-social da Terra Indígena Guarita...
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mantêm intercambio e laços de
solidariedade entre os estados do Rio
Grande do Sul e Santa Catarina. Destaca-se
que a mobilidade colabora para a
“produção de novos saberes, circulação
maior de bens, de sementes ... além de
ervas medicinais” (Benites, Falcade &
Luckmann, 2014, p. 145).
Conforme abordado anteriormente,
atualmente vivem na aldeia 33 famílias,
sendo que apenas 17 praticam
integralmente os costumes e tradições
Guarani Mbyá. O restante das famílias são
formadas por mestiços
viii
e não utilizam no
dia a dia a língua materna.
Quando questionado sobre os
conflitos na Terra Indígena Guarita, o
cacique relatou que, antigamente, existiram
muitos conflitos entre os indígenas, pois
não “se entendiam”, porém hoje, através
das leis e, principalmente do diálogo,
tornou-se possível ter um convívio
pacífico.
Na visita realizada à Tekoá Ka’aguy
Porã, observou-se a existência de casas de
alvenaria, com área aberta em forma oval e
algumas poucas casas de madeira. No
centro da Tekoá está localizada a Opy, a
casa de reza. O local, tradicionalmente
confeccionado com pau a pique, trama de
taquaras, barro e com telhado de palha.
Segundo o cacique, “esta é a construção
mais valiosa da nossa aldeia, é onde nosso
povo se reúne para participar dos rituais e
para renovar os significados essenciais do
nhandereko
ix
”.
De acordo com o entrevistado
(2018), a Opy é um espaço que fornece
força aos indígenas, onde ocorrem os
rituais mais importantes e onde o Karaí
recebe as revelações de Nhanderu
x
. As
cerimônias são realizadas no começo da
noite e não tem hora para terminar. Sua
periodicidade varia de duas a três vezes por
semana, ou com maior frequência se
alguém precisa de rituais de cura.
A Casa da Reza é o espaço de
formação, onde os mais velhos passam
seus ensinamentos às crianças e aos jovens.
É neste local sagrado que os índios
Guarani também realizam o Nhemongaraí,
conhecida como cerimônia do milho onde
as sementes são abençoadas para garantir
uma boa colheita, e também a cerimônia de
batismo das crianças
xi
, momento em que
são revelados e atribuídos os nomes em
Guarani às crianças.
Para Benites, Falcade e Luckmann
(2014), além da Opy ser um local que une
as pessoas, o cachimbo, chamado de
Petyngua
xii
também gera união entre a
comunidade e é sempre utilizado pelo
Karaí quando este está no interior da Opy.
Segundo Silva (2015), no petyngua
utilizam fumos de corda que produz o
Tataxina, fumaça Sagrada. A fumaça
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obtida através do uso do petyngua, tem a
função de tratamento de doenças, obtenção
de concentração, inspiração nos estudos,
aconselhamento e limpeza espiritual.
Observou-se, durante as visitas, que
o petyngua e o Karaí são elementos
fundamentais dentro da aldeia. Para o
cacique, “por meio desses dois elementos é
possível ter um contato direto com
Nhanderu, nosso Deus”.
Segundo Silva (2015), há uma força
espiritual no uso do petyngua utilizado
pelo Karaí, pois muitas pessoas
conseguem a cura de alguns males somente
quando ungidas com sua fumaça. Além do
petyngua utilizam nos rituais alguns
instrumentos musicais como o popygua
xiii
,
o takuapu
xiv
, violão e tambor. Foi
observado que na Opy tem uma porta de
entrada, justificado pelos entrevistados
para evitar a entrada de espíritos
indesejados.
No que se refere aos aspectos da
alimentação, o Cacique relata que: “a
alimentação tem um pouco da cultura
juruá, mas ainda se mantém muito da
nossa cultura, estamos tentando preserva-
la”, a maioria das famílias sobrevive
através de agricultura de subsistência. Em
pequenas clareiras abertas na mata,
plantam suas roças. Cultivam mandioca,
batata, milho, amendoim, feijão, melancia,
abóbora e moranga. Também retiram da
mata as ervas medicinais, erva mate e
folhas de fumo nativas, para
posteriormente utilizar no petyngua.
Também se observou a presença de árvores
frutíferas ao redor das casas.
Ainda foi possível observar que os
indígenas possuem o domínio e a
autonomia sobre as sementes utilizadas. O
manejo das sementes crioulas abrange a
manutenção e a permanência delas.
Em conversas realizadas é
perceptível que as práticas tradicionais e
agroecológicas revelam a presença
significativa da preocupação com a
permanência da agrobiodiversidade da
Tekoá Ka’aguy Porã. O conjunto destas
práticas resulta do conhecimento que é
passado de geração em geração.
As principais fontes que compõem a
renda das famílias indígenas são:
programas de assistência social como o
Bolsa Família, aposentadorias e
principalmente o artesanato.
No que diz respeito à educação, na
Tekoá Ka’aguy Porã, existe somente uma
instituição de ensino, a Escola Estadual
Indígena de Ensino Fundamental Sepé
Tiaraju. De acordo com o Cacique, nos
próximos anos será implantado na escola o
ensino médio, evitando-se assim, o
deslocamento destes alunos até o
município de Erval Seco. Atualmente 80
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alunos estão regularmente matriculados na
escola.
Na escola, a língua Guarani é
trabalhada até o ano, posteriormente, o
português (a importância da aprendizagem
dessa língua decorre da necessidade de
comunicação) é acrescentado e as aulas de
Guarani continuam até o 9º ano. Alguns
professores são da própria aldeia, um deles
é o cacique, outros dois se deslocam da
cidade de Erval Seco. As merendeiras da
escola são da comunidade.
Quanto a cultura e religião, o povo
Guarani que vive na Tekoá Ka’aguy Porã
mantém, como sempre fizeram seus
antepassados, íntegras suas crenças
religiosas, o culto aos mortos e, segundo o
Cacique, não permitem o ingresso de
outras religiões em seu território. É nítido
que preservam seus conhecimentos
tradicionais e dominam o uso das ervas
medicinais, “nossa farmácia está na mata”,
diz o Cacique. Transmitem seu
conhecimento, oralmente, dos mais velhos
para os mais jovens com a finalidade de
preservar e manter essa riqueza de
conhecimento. Ficou evidente que não
admitem nenhuma forma de
comercialização de qualquer espécie de
erva medicinal.
Declararam-se sadios, pois segundo
o Cacique, raramente ficam doentes,
quando isso ocorre, primeiramente
recorrem a mata, para posteriormente, em
casos mais graves, procurarem o posto
médico, que está localizado na aldeia. Na
Unidade Básica de Saúde (UBS) são
realizados duas vezes na semana
atendimento por enfermeiros, dentistas e
médicos. Conforme apontam Falcade e
Luckmann (2010), as gestantes podem
escolher onde querem ter seus filhos,
aquelas que preferem ou necessitam de
cuidados especiais são encaminhadas ao
Hospital Santo Antônio na cidade de
Tenente Portela. As demais têm seus filhos
na Aldeia com a ajuda das “parteiras”.
Conforme sinalizou o cacique, possuem
controle de natalidade por método natural,
inclusive contraceptivo de uso masculino.
A aplicação de sanções penais e
disciplinares é executada pelo cacique da
aldeia e não se constitui crime aos olhos da
lei. Isso porque, o artigo 231 da
Constituição Federal reconhece a
organização social, os costumes e as
tradições indígenas. Também o Estatuto do
Índio, em seu artigo 57, diz que estas
sanções são toleradas, desde que não se
revistam de caráter cruel ou infamante.
Segundo o cacique, antigamente as
punições eram mais rígidas, sendo que a
liderança utilizava um cassetete feito com
pele de animal para punir. Também,
quando havia algum desentendimento entre
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os casais, traições, por exemplo, o castigo
era raspar o cabelo.
Em relação ao culto aos mortos,
costumam velar seus entes, posteriormente,
os sepultam no meio da mata, distante da
aldeia. Acreditam que possuem dois
espíritos, um bom e outro mau, por isso,
sepultam longe da aldeia, com receio do
espírito mau se manifestar.
O Artesanato
Segundo Gonçalves (2010), os índios
Guarani Mbyá se dedicam ao artesanato
com taquaras pintadas com tinta natural e
confeccionam pequenos objetos para os
lares, cestos grandes para transporte dos
produtos colhidos em suas lavouras.
Confeccionam esculturas em madeira,
cortiça, representando pequenos animais
silvestres.
Os guarani não têm o hábito de sair
da aldeia para vender seus artesanatos, as
cestas e os balaios são utilizados no serviço
rotineiro da roça (Gonçalves, 2010).
Somente são comercializados quando
participam de algum evento ou quando
recebem visitantes na aldeia, um evento
conhecido é a “Caminhada Ecológica de
Integração de Culturas na Jeguata Ka’aguy
Re”, que acontece anualmente no mês de
abril.
De acordo com Silva (2015), o
grafismo impresso nas cestarias é usado
para adornar corpos e objetos, por
exemplo, não são simples desenhos, neles
muitos significados, pois é uma forma
de afirmação cultural, e está associado à
mitologia e cosmologia. Através do
grafismo presente no artesanato, os guarani
valorizam a memória de seus ancestrais e,
assim, preservam a sua maneira de ser e de
viver, mantendo viva a sua tradição.
Conforme Figura 5, o artesanato feito
pelos indígenas, destinado à venda, tem a
finalidade de ornamentação e as esculturas
em madeira representam a vida selvagem.
Figura 5 Artesanato indígena.
Fonte: Registro dos autores.
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De acordo com Silva (2015), os
desenhos básicos existentes nos trançados
da cestarias são: O Ypara Korava´e, em
forma de losango, Ypara kora jo´ava´e, em
forma de Cruz, Ypara Ryxyva´e, em forma
de S. Os três desenhos básicos representam
formas diferentes: o Ypara Korá apresenta
várias formas geométricas encontradas no
corpo das cobras, o Ypara Jaxá representa
as correntes e é em forma de linhas retas e
o Ypara Ixy representa os movimentos das
cobras em forma de zigue-zague.
Como vimos anteriormente, as
tranças dos cestos têm significado especial,
chamado Iparaxyry, que significa o
caminho que os guarani fazem quando
visitam ou mudam de aldeia.
O artesanato confeccionado em
madeira pirogravada é realizado pelos
homens e simboliza o modo de viver e a
relação da comunidade com os seres da
natureza.
Além das cestarias, artesanato em
madeira, tem-se também os Mbo`y
(colares) e Poapy Reguá (pulseiras), ambos
são confeccionados pelas mulheres, que
utilizam sementes e miçangas. Os colares
feitos de sementes servem para se
distinguir de outros grupos. As sementes
são elementos sagrados para o povo
Guarani. Estes significam proteção e
fortalecimento do espírito (Silva, 2015).
Conforme o relato do cacique
quando um indígena for sair para fora da
aldeia, visitar um parente, deverá estar
usando um colar consagrado pelo Karaí.
Esse vai protegê-lo durante a viagem para
que nada de mal lhe aconteça.
A de se concordar com Ribeiro
(2013), quando diz que o artesanato
indígena é uma das mais belas e
significativas formas de expressão cultural.
Sendo este, de extrema beleza e de grande
valor artístico, pois representa a expressão
cultural do povo indígena brasileiro. Sendo
assim, verificou-se que a atividade se faz
presente na maioria das famílias da aldeia,
como forma de complementação da renda.
O cacique também salientou o fato
da alimentação variar de acordo com o que
é colhido em cada época do ano. As
refeições são baseadas em batata e
mandioca assada, o milho pode ser assado
ou torrado, amendoim torrado e frutas
silvestres. O milho apresenta-se como
alimento mais importante para os índios
Guarani Mbyá. Ele possibilita a conexão
entre dois mundos: espiritual e físico.
Conforme ele, frequentemente consomem
farofa de milho, que é confeccionada de
milho crioulo, socado em pilão, aquecido
com uma mistura de cinza.
Outro aspecto interessante é que
praticam a agricultura ecológica. Possuem
sementes crioulas. Sendo tarefa da mulher
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mais velha da aldeia, Santa da Silva,
Kunhã Karaí, cuidar e zelar pelas sementes
tradicionais de milho, feijão, amendoim,
dentre outras. Os homens ajudam na
limpeza e no preparo da terra. Como vimos
anteriormente, o milho tem valor especial
para os índios Guarani Mbya. Todo o
processo de plantio, cultivo e colheita
definem o calendário religioso e social da
Tekoá Ka’aguy Porã.
Para a subsistência produzem milho,
feijão, mandioca, batata doce, abóbora,
entre outros. Assim, observou-se que na
Tekoá Ka’aguy Porã a utilização do solo é
diferente. Abrem pequenas clareiras na
mata e plantam tudo da forma tradicional e
orgânica, utilizando sementes crioulas.
Não utilizam nenhuma espécie de sementes
de fora de seus domínios. Produzem seus
alimentos como nos tempos de seus
antepassados (Gonçalves, 2010).
O canto, a música e a dança estão
sempre presentes no dia a dia dos
indígenas que vivem na Tekoá Ka’aguy
Porã. É por meio da música que eles
relatam sua história, conhecimentos e
ensinam os mais jovens, referindo-se e
enaltecendo a natureza e Nhanderú. Existe
na aldeia o Coral Nhamandu Jexaca
xv
,
composto por 13 participantes, que
realizam diversas apresentações,
mostrando sua cultura para os não
indígenas. Utilizam alguns instrumentos
musicais como Mbaraká
xvi
, Rave
xvii
,
Marabaká Mirĩ
xviii
, Anguapu
xix
e
Takuapu
xx
. O Coral ajuda no sustento das
famílias, pois nas apresentações os
participantes vendem artesanato, sendo
uma forma, também, de mostrar sua
cultura.
Considerações finais
O presente estudo possibilitou
conhecer o cotidiano e os modos de vida
do povo Guarani, procurando identificar e
entender as especificidades do modo de ser
Guarani na aldeia Tekoá Ka’aguy Porã,
incluindo suas crenças, hábitos alimentares
e elementos da cultura material. Por meio
da observação e da interação com o objeto
da pesquisa foi evidenciado suas relações
com a natureza.
É perceptível que a cultura dos índios
Guarani Mbyá é muito diferente de outras
culturas, principalmente daquela herdada
dos povos europeus que também
colonizaram essa região. Foi também
observado que praticam a sustentabilidade,
preservando suas tradições. Para o povo
Guarani que vive na Tekoá Ka’aguy Porã,
a terra é fundamental para a manutenção da
vida, porque sem a terra não tem vida,
alimento, saúde, casa, tampouco cultura e
nem sustentabilidade.
É marca desse povo o modo como
cuidam da vida e das coisas que fazem
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parte de seu cotidiano primando pelas
relações com Nhanderú, com as pessoas,
animais e plantas. Toda a vivência ao
longo do estudo nos mostra o quanto o
modo de viver Guarani nos desafia a ter o
cuidado com a vida como prática constante
em nosso cotidiano. Para a formação dos
futuros educadores/as do campo, conhecer
um pouco dos povos tradicionais que terão
contato futuramente em suas práticas se
mostrou importante passo no percurso
formativo dos mesmos.
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i
Desde 1953, ficou estabelecido entre os
antropólogos, que o substantivo gentílico referente
aos povos indígenas seria grafado em maiúsculo e
nunca pluralizado, pois muitas vezes o substantivo
está no plural na língua indígena de referência,
além do mais, designa um povo (Kondo & Fraga,
2014, p. 415; Becker, 1976).
ii
Termo da língua portuguesa que significa
“guarda”, “vigia”.
iii
https://rdfoco.com/noticia/7433/programao-da-
semana-do-ndio-na-terra-indgena-do-guarita.
iv
O termo “setor” refere-se às diferentes localidades
que compõe a Terra Indígena Guarita.
v
Acadêmico do Curso de Licenciatura Intercultural
Indígena do Sul da Mata Atlântica, com ênfase em
artes e linguagens, da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC).
vi
Ancião, líder espiritual, também conhecido como
Pajé. Élio Fernandes, 91 anos de idade, fala poucas
palavras em português.
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vii
Termo usado pelos indígenas para definir o não
indígena.
viii
São pessoas descendentes de duas etnias, neste
caso, indígenas e não indígenas.
ix
Modo de ser Guarani.
x
Deus Guarani.
xi
O nome de cada Guarani representa a sua Nhe’ Ê-
Ayvu “alma-palavra”. Quando a criança recebe seu
nome, recebe junto à porção divina de sua alma.
Cabe ao Karaí descobrir o nome de cada criança.
xii
Cachimbo tradicional esculpido em de pinho
ou argila.
xiii
Clave rítmica.
xiv
Bastão rítmico.
xv
Em português, Brilho do Sol.
xvi
Em português, Violão.
xvii
Em português, Violino.
xviii
Em português, Chocalho.
xix
Em português, Tambor.
xx
Em português. Instrumento e percussão.
Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 28/02/2020
Aprovado em: 11/03/2020
Publicado em: 01/03/2021
Received on February 28th, 2020
Accepted on March 03th, 2020
Published on March, 01st, 2021
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responsáveis por todas as etapas e resultados da
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Paprosqui, J., Cancelier, J. W., Guterra, G. G., Konzgen,
Q. R. S., & Ramos, V. G. (2021). O processo histórico-
social da Terra Indígena Guarita. Rev. Bras. Educ. Camp.,
6, e8533. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e8533
ABNT
PAPROSQUI, J.; CANCELIER, J. W.; GUTERRA, G. G.;
KONZGEN, Q. R. S.; RAMOS, V. G. O processo histórico-
social da Terra Indígena Guarita. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 6, e8533, 2021.
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