Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e7208
Tocantinópolis/Brasil
v. 4
e7208
10.20873/uft.rbec.e7208
2019
ISSN: 2525-4863
1
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Escola Família Agrícola de Olivânia: 50 anos de história
narrada por muitas vozes
Rogério Omar Caliari
1
, Erineu Foerste
2
1
Instituto Federal do Espírito Santo - IFES. Coordenadoria do Curso de Licenciatura em Pedagogia. Campus Itapina. Rodovia
BR 259, Km 70, Zona Rural. Colatina - ES. Brasil.
2
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES.
Autor para correspondência/Author for correspondence: rogerio.caliari@ifes.edu.br
RESUMO. Neste artigo expomos as narrativas dos movimentos
que antecederam o início das atividades da Escola Família
Agrícola de Olivânia. O estudo teve como objetivo investigar as
relações entre as famílias camponesas e a Escola Família
Agrícola de Olivânia. Os processos investigações para produção,
sistematização e análise de dados beneficiaram-se da realização
de entrevistas semiestruturadas, análise documental, observação
direta, registros sistemáticos em diário de campo. As complexas
realidades encontradas foram focalizadas de formas abrangentes
e contextualizadas em rodas de conversas com os protagonistas
da pesquisa a partir dos movimentos e momentos de interação
potencializados pela Pedagogia da Alternância. No final da
década de 60, seus momentos iniciais foram acompanhados por
mobilizações organizadas pelo Movimento de Educação
Promocional do Espírito Santo - Mepes, que principiava suas
atividades nos municípios de Anchieta, Alfredo Chaves, Rio
Novo do Sul, Piúma e Iconha. São descritas as articulações e
mobilizações para a concretização do projeto de construção do
prédio destinado às atividades escolares, fruto das inquietações
de Dom Helvécio Gomes de Oliveira e das famílias camponesas
residentes no Vale do Rio Coryndiba. Concluídas as instalações,
percebeu-se que o projeto para a consolidação desse sonho
requeria muito mais que a edificação do prédio. Sua ocupação
alterna-se, entre colégio sacerdotal, residência de padres, posto
de venda de insumos agrícolas e educandário social, finalizando,
em 10 de março de 1969, com a inauguração da Escola da
Família Rural de Olivânia.
Palavras-chave: Família Camponesa, Pedagogia da
Alternância, Educação Popular, Participação Popular.
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Family Farm School: 50 years of history narrated by many
voices
ABSTRACT. In this article we expose the narratives of the
movements that preceded the beginning of the activities of the
Agricultural Family School of Olivânia. The study aimed to
investigate the relationships between peasant families and the
Olivânia Agricultural Family School. The processes
investigations for production, systematization and data analysis
benefited from semi-structured interviews, documentation
analysis, direct observation, systematic records in field diary.
The complex realities found were focused on comprehensive
forms and contextualized in wheels of conversations with the
protagonists of the research from the movements and moments
of interaction enhanced by the Pedagogy of Alternation. At the
end of the 1960s, his initial moments were accompanied by
mobilizations organized by the Promotional Education
Movement of Espírito Santo - Mepes, which began its activities
in the municipalities of Anchieta, Alfredo Chaves, Rio Novo do
Sul, Piúma and Iconha. The articulations and mobilizations for
the implementation of the construction project of the building
for school activities are described, the result of the concerns of
Dom Helvécio Gomes de Oliveira and the peasant families
living in the Coryndiba River Valley. Once the facilities were
completed, it was noticed that the project for the consolidation
of this dream required much more than the building. Its
occupation alternates, between priestly college, residence of
priests, sale post of agricultural and social ducefying inputs,
ending, on March 10, 1969, with the inauguration of the School
of the Rural Family of Olivânia.
Keywords: Peasant Family, Pedagogy of Alternation, Popular
Education, Popular Participation.
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Escuela Familia Agrícola de Olivânia: 50 años de historia
narrada por muchas voces
RESUMEN. En este artículo exponemos las narrativas de los
movimientos que precedieron al inicio de las actividades de la
Escuela de Familia Agrícola de Olivânia. El estudio tenía como
objetivo investigar las relaciones entre las familias campesinas y
la Escuela de Familia Agrícola de Olivânia Los procesos de
investigación para la producción, sistematización y análisis de
datos se beneficiaron de entrevistas semiestructuradas, análisis
de documentación, observación directa, registros sistemáticos en
diario de campo. Las complejas realidades encontradas se
centraron en formas integrales y se contextualizaron en ruedas
de conversaciones con los protagonistas de la investigación de
los movimientos y momentos de interacción potenciados por la
Pedagogía de la Alternancia. A finales de la década de 1960, sus
primeros momentos fueron acompañados por movilizaciones
organizadas por el Movimiento Educativo Promocional de
Espírito Santo - Mepes, que inició sus actividades en los
municipios de Anchieta, Alfredo Chaves, Rio Novo do Sul,
Piúma y Iconha. Se describen las articulaciones y
movilizaciones para la implementación del proyecto de
construcción del edificio para las actividades escolares, fruto de
las preocupaciones de Dom Helvécio Gomes de Oliveira y las
familias campesinas que viven en el valle del río Coryndiba.
Una vez finalizadas las instalaciones, se notó que el proyecto
para la consolidación de este sueño requería mucho más que el
edificio del edificio. Su ocupación alterna, entre el colegio
sacerdotal, la residencia de sacerdotes, la venta de insumos
agrícolas y sociales de la defensa, terminando, el 10 de marzo de
1969, con la inauguración de la Escuela de la Familia Rural de
Olivánia.
Palabras clave: Familia Campesina, Pedagogía de la
Alternancia, Educación Popular, Participación Popular.
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Introdução
Neste texto, expomos parte de uma
pesquisa desenvolvida no âmbito do
Programa de Pós - Graduação em
Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo. O estudo teve como
objetivo investigar as relações entre as
famílias camponesas e a Escola Família
Agrícola de Olivânia, localizada no Vale
do Rio Coryndiba
i
, no município de
Anchieta, Estado do Espírito Santo, Brasil.
Os processos de investigações para
produção, sistematização e análise de
dados beneficiaram-se da realização de
entrevistas semiestruturadas e registros
sistemáticos em diário de campo. As
complexas realidades encontradas foram
focalizadas de forma abrangente e
contextualizadas em rodas de conversas
com os protagonistas da pesquisa a partir
dos movimentos e momentos de interação
potencializados pela Pedagogia da
Alternância.
A história que acompanha a
construção onde ocorreria a instalação da
Escola da Família Rural de Olivânia é
marcada pelos esforços das famílias
camponesas do Vale, ao cooperarem com a
materialização do projeto de Dom
Helvécio, com o objetivo de trazer para a
região a possibilidade de acesso à
escolarização para os filhos dessas famílias
do Vale, em uma época marcada pela
exclusão educacional para os povos do
campo. O projeto era fortalecido pelo
desejo de construir na região um “colégio”,
uma instituição escolar confessional com a
finalidade de preparar futuros candidatos
para ingresso nos seminários de formação
sacerdotal.
“Collégio São José” um desejo
compartilhado entre Igreja e
Comunidade
O sonho de Dom Helvécio começou
a se concretizar, assim como o desejo da
comunidade de ver o projeto concluído e
tornar-se um local que beneficiasse as
famílias residentes no Vale, conforme
apontamentos, de autoria desconhecida,
nos manuscritos complementares, quando,
em 1930, visitou a fazenda onde nascera e
o Sr. Abel Sangalli, na época, proprietário
das terras “em que ainda se sinais da
antiga casa, de acordo com a mulher e seus
filhos fez doação de um alqueire de terra,
incluindo justamente a área da primitiva
habitação”. Os elementos informativos que
constam nos referidos manuscritos
configuram uma manifestação de
satisfação por parte de Dom Helvécio, que
disse, na oportunidade, a intenção de
destinar a área das terras doadas para a
construção de um colégio para atender às
famílias camponesas do Vale.
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Como fazia habitualmente, Dom
Helvécio, no ano seguinte, retorna para sua
visita ao Vale. Após celebrar missa na
igreja de São Miguel, no dia 12 de abril de
1932, foi visitar o lugar onde seria
construído o futuro colégio.
Um mês depois, retorna, em nova
visita, para as terras onde nasceu e
demarca o lugar de instalação do colégio.
Nessas duas oportunidades, lança
campanhas para arrecadar recursos que
seriam destinados à construção do colégio.
A primeira era uma “lembrança”, com a
reprodução da imagem de “San Joseph”
que, posteriormente, denominaria o futuro
colégio. No verso, constavam os seguintes
dizeres: Lembrança da benção e colocação
(sic) da pedra fundamental do erigendo
collegio (sic) para a juventude do ubérrimo
Valle do rio corindyba sob os auspícios
generosos do nosso amado conterrâneo
Dom Helvécio Gomes de Oliveira
Olivânia, (fronteiro ao povoado de S.
Miguel) no dia 18 de setembro de 1931.
Para a segunda campanha de
arrecadação de dinheiro para a construção
do colégio, foi confeccionado cartão com a
reprodução, em desenho, da futura fachada
do prédio principal. No verso se
encontravam os seguintes dizeres: fachada
principal do collegio (sic), cuja pedra
angular foi solenemente (sic) benta pelo
grande amigo da juventude d’estas
paragens, o nosso eminente conterrâneo
(sic) DOM HELVÉCIO, no logar (sic)
do seu nascimento, na ex-fazenda olivânia,
aqui aberta em 1908, pelos seus veneráveis
progenitores, T. Cel. José Gomes de
Oliveira e D. Maria Mattos de Oliveira.
ii
Em diversos momentos, era possível
observar o envolvimento das famílias
empenhadas na conclusão da obra.
Doações eram feitas, como as de Firmo
Giovanni Marchesi, que, em carta enviada
em 31 de outubro de 1931 para Ernesto
Mantovanelli, afirma, nos seguintes
termos: “já escrevi p/ D. Helvecio dando
conhecimento da bela (sic) e generosa
gratificação de trezentos mil reis pela
confecção do histórico d’ahi (sic) como
também o destino que lhe vou dar isto é,
parte igual ao collegio (sic) que D.
Helvecio tenciona fundar”.
As outras doações ocorriam com
material de construção necessário para a
edificação da obra. Encontramos em
Marchesi (1930), a seguinte referência
sobre a construção do colégio:
como já se disse serem terminados os
principais trabalhos de construcçao
(sic), que não poucos sacrifícios
custaram, é de ver aqui notar que
quase (sic) toda a madeiragem (sic)
necessária, foi cedida desde prencipio
(sic) pelos Srns (sic). José Pinto e
Miguel Pinto e isto de muito boa
vontade, tanto para as obras, como
para os andaimes. E como foram
aproveitadas árvores de qualidade e
de lei, que muito valeram também,
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pela proximidade é justo que disso se
mencione e os nomes lembrados.
Independentemente da situação
financeira em que se encontravam, todos
acolhiam os chamados da Igreja e das
lideranças comunitárias para colaborar
com recursos e trabalho para a conclusão
do colégio. Repetiam o que ocorrera na
construção da Igreja de São Miguel,
quando as famílias não mediam esforços
para participar dos mutirões e ajudar com
recursos financeiros.
O “Collégio São José” passou a fazer
parte do roteiro de Dom Helvécio, quando
se encontrava de visita na região. No dia
26 de abril de 1936, após as celebrações na
Igreja de São Miguel, conforme trechos
manuscritos, foram p/ o Colejo (sic) com
a Banda de muzica de Alfredo Chaves,
logo teve a Bença (sic) do Colejo (sic) e
em seguida (sic) o almoço (sic), em
seguida (sic) ove (sic) a descoberta dos
quadros de Dom Bosco, outro Sua Exma
D. Helvecio e logo discursou o Snr. Assiz
(Autoria desconhecida, 1936). Em outro
documento manuscrito, encontramos
trechos que afirmam que, no mesmo ano,
no dia 23 de setembro, Dom Helvécio
retorna para Olivânia, permanecendo em
residência construída por sua solicitação,
próxima ao colégio. No dia 3 de outubro, o
colégio “chegou Exa Governador do
Estado o S
nr
Capitão João Punaro Blei em
companhia do Dr. Carlos Lindember
pernoitaro no colejo (sic)” (Autoria
desconhecida, 1936).
As manifestações de acolhida e
atendimento aos convites para as
celebrações e colaboração compartilhadas
entre os membros das comunidades, para
atender aos convites de mutirões e doações
feitos por Dom Helvécio, confirmam que o
poder exercido pela Igreja Católica,
representada por seus clérigos, era
observado nas manifestações de
demonstradas pelas comunidades e
famílias camponesas no Vale. O
reconhecimento das representações
religiosas constituídas se estabelece como
núcleo da força religiosa e, portanto, era
incorporado à consciência do camponês
não somente nos aspectos de devoção, e
espiritualidade, mas, principalmente, em
suas práticas sociais e no respeito e
acolhimento às solicitações dos
representantes religiosos.
O poder eclesiástico, reconhecido
como mais intenso pelos moradores mais
antigos entrevistados, é representado pelo
significado que as famílias camponesas
concebiam quando das visitas de Dom
Helvécio ao Vale. Confirmam-se, nos
períodos que antecediam a chegada,
durante e após as visitas de autoridade
eclesiástica de Dom Helvécio: “como líder
religioso, social e condutor de seus
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paroquianos, sua sacralidade, autoridade,
carisma, muitas vezes sua racionalidade e
orientação política tornam-no centro da
vida comunitária”. (Tedesco, 1999, p. 87),
facilitando, com que seus projetos fossem
absorvidos pelas comunidades em sinal de
devoção, com aspectos implícitos de
legitimação do poder eclesiástico por tudo
o que representava Dom Helvécio na
hierarquia da Igreja.
A construção foi concluída em 1933,
recebendo a denominação oficial de
“Collégio São José”
iii
, como fora definido
pela imagem de São José, reproduzida nas
lembranças entregues aos que fizeram
doações para a conclusão das obras. Sua
estrutura arquitetônica final não seguiu o
projeto original. No pátio interno, a igreja
planejada, não foi construída, uma vez que
o propósito da construção do colégio
que ele [Dom Helvécio] pretendia era
assim: o colégio aqui e mais uma
ponta de 50 metros, no meio, para
traz. O colégio no começo era para
fazer o desenho do avião. As asas
eram as salas e dormitórios e a igreja
no meio seria o corpo do avião. O
colégio, no meio, era para ser a
igreja. Fez o alicerce todo da igreja e
fez aquela frente, mas quando foi
para fazer o final não deu. Não sei se
o dinheiro acabou sei que
desanimou. (Deoclécio e Hilda Boni
Mantovanelle).
O “Collégio São José” foi utilizado
inicialmente como igreja, depois
funcionou, de forma precária, como
seminário de iniciação sacerdotal ao longo
da década de 30. Cumpria sua finalidade
inicial: “era para a formação de padre. O
colégio tinha um propósito. Não era uma
escola para a comunidade. Nada de escola
aí, o propósito era fazer um colégio para
formar padres” (Deoclécio e Hilda Boni
Mantovanelle).
Diante de um cenário que se
mostrava completamente desfavorável para
a continuidade do projeto original para o
qual o “Collégio São José” foi construído,
Dom Helvécio transfere as instalações e a
posse das terras onde estava edificado o
colégio para o Estado do Espírito Santo. O
direito de utilização da doação foi entregue
à Secretaria Estadual de Agricultura,
Terras e Colonização. Na década de 50,
seguindo os projetos governamentais de
expandir o sistema de assistência cnica
no campo, o governo do estado transforma
o “Collégio São José” em um posto de
fomento agropecuário para atender às
famílias camponesas do Vale. Essa
iniciativa funcionou, também, por pouco
tempo.
Conforme anotações de Mario
Zuliani e Emílio Soares Rocha, o
compromisso de fazer funcionar no local
uma instituição de ensino foi cumprido na
década de 60, quando foi criado um
educandário agrícola para menores
carentes provenientes de Vitória. A
instituição era mantida com recursos
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públicos estaduais. A presença do estado
no educandário foi interrompida com a
transferência da gestão e manutenção do
educandário para a Legião Brasileira de
Assistência (LBA) em 1963.
A partir de 1963, o educandário em
Olivânia recebe a denominação de “Obra
Social de Formação Agrícola Dom
Helvécio”. O primeiro diretor da
instituição foi o professor Henrique Mello
Junior, que permaneceu no cargo até 1964.
Entre 1965 e maio de 1966, data de seu
fechamento, dirigia a instituição o
professor Itamar Moreira da Fraga.
As informações obtidas com a
entrevista realizada com o Sr. Itamar Fraga
nos permitem entender o funcionamento de
uma instituição agrícola que atendia
exclusivamente às crianças que viviam em
situação de risco e exclusão social em
Vitória. Eram crianças que
viviam da coleta de esmolas, não
frequentavam escolas, viviam nas
portas de restaurantes, moram na rua
e têm dificuldade de se alimentar,
dormiam na rua, sem teto, sem
cobertor e família. Eram filhos
desamparados de famílias
desesperadas. (Itamar Moreira da
Fraga).
Na expectativa de que fosse mantido
o vínculo com a família, no final do ano, a
escola levava os meninos para retomar o
convívio com seus familiares durante
alguns dias. Após esse período, as crianças
retornavam para o educandário.
A sistemática de funcionamento do
educandário estabelecia a divisão do grupo
de internos em dois turnos. Cada grupo
tinha uma atividade previamente
determinada. Um grupo seguia para a
escola primária, localizada nas
proximidades do educandário, na qual as
atividades de docência eram exercidas
pelas professoras Jocelina Nogueira e
Delorme da Paixão Poton. A referida
escola foi instalada em 1935, por
influência de Dom Helvécio e pelas
reivindicações das famílias camponesas da
região. Atendia às crianças das famílias
próximas e das comunidades
circunvizinhas. O outro grupo se dirigia
para os locais de cumprimento das
atividades de manejo da lavoura e na
criação de animais. Após o almoço, os
grupos alternavam-se nas atividades. O
final do dia consistia em tomar banho,
fazer uma refeição e, entre as 19 e 20
horas, todos se recolhiam para o descanso:
“todos juntos em um grande salão. A cama
era simples. Estavam tão cansados que
dormiam logo. Às 6 da manhã todos
acordavam”. (Itamar Moreira da Fraga).
Em situações de enfermidade, algo
comum de ocorrer, a farmácia localizada
próxima do educandário prestava o
atendimento necessário. Os casos não
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atendidos pelo farmacêutico local, Sr.
Boaventura d’Almeida, eram
encaminhados para Vitória.
Em maio de 1966, a LBA decidiu
encerrar as atividades do educandário na
Comunidade de Olivânia. Os internos com
idades superiores a 14 anos retornaram
para o convívio de suas famílias. Não
sabemos se realmente isso ocorreu ou se
regressaram à antiga condição de crianças
abandonadas pelas famílias e pelos órgãos
públicos. Os internos com idades inferiores
a 14 anos foram enviados para o
Educandário Darcy Vargas”, também
administrado pela LBA, localizado na área
rural do município de Domingos
Martins/ES.
Entre 1966 e 1967, o educandário é
transformado em uma “Casa de Fomento”,
mantida pela Secretaria Estadual de
Agricultura, com o objetivo de promover o
desenvolvimento econômico e social da
região. A instalação ocorre pela
necessidade de assentar, em bases técnicas
e econômicas, o novo plano de
desenvolvimento agrícola para as famílias
camponesas locais e comunidades
circunvizinhas, e transformar a região em
áreas de referência dos programas estatais
de modernização da agricultura. O projeto
foi encerrado no final de 1967. No ano
seguinte, o prédio ficou fechado.
Conforme relatório da Diretoria
Provisória do Mepes, em maio de 1968, o
representante estadual da Legião Brasileira
de Assistência, coronel José Sílvio Alves
Torres, ofereceu ao Mepes, em regime de
comodato, a cessão das instalações do
antigo educandário, que se deteriorava por
não estar sendo ocupado. Por meio de um
convênio especial de cooperação
financeira, comprometia-se a contribuir
com o valor de NCR$ 6.000,00 (seis mil
cruzeiros novos) para a manutenção e
funcionamento das futuras atividades que
seriam desenvolvidas nas instalações. Com
a garantia da Diretoria Provisória do
Mepes da aprovação do convênio, a
diretoria estadual da LBA autorizou a
posse do prédio, bem como dos 38,7ha
correspondentes às terras da LBA em
Olivânia.
A Escola da Família Rural de Olivânia
inicia sua caminhada
O projeto de instalação da primeira
instituição escolar a adotar a Pedagogia da
Alternância no continente americano se
efetiva no dia 10 de março de 1969. Os 27
alunos da primeira turma de Olivânia eram
oriundos dos municípios de Alfredo
Chaves (dois), Anchieta (12), Iconha (três),
Piúma (dois), Guarapari (quatro) e Rio
Novo do Sul (quatro), resultado das
atividades de caráter comunitário que o
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Mepes desenvolvia nesses municípios.
Todos do sexo masculino e idade entre 14
a 18 anos. Com a criação do curso de 2
o
grau profissionalizante aumenta a presença
das famílias camponesas do Vale na
Escola.
A partir das entrevistas com o
primeiro coordenador da Escola da Família
Rural de Olivânia e incentivador, nas
comunidades, para a abertura de Escolas da
Família Rural, Mário Zuliani, podem-se
identificar os motivos do reduzido número
de filhos das famílias camponesas na
escola. Segundo Mário Zuliani, não houve
uma mobilização efetiva das famílias e
comunidades camponesas, como ocorrera
na instalação das outras escolas. A
mobilização comunitária nas demais
escolas foi intensamente motivada por
meio de entrosamento cada vez mais
intenso entre os responsáveis das várias
comunidades com a finalidade de juntar
todos os esforços disponíveis para uma
ação em comum de promoção humana e
social da comunidade inteira. (Bordenave,
1994, p. 8).
Conforme este mesmo autor, isso
envolveria a reconstrução de princípios que
gradualmente foram substituindo a
participação responsável da pessoa e da
comunidade pelo paternalismo estatal. Em
outras palavras, a escola construída pela
própria comunidade foi deslocada do
projeto original de beneficiar a todos.
Gradualmente, distancia-se das
expectativas criadas nas famílias
camponesas nos momentos em que
atendiam às convocações para doações e
realizações de mutirões. Nos momentos em
que transportavam pedras e areia,
fabricavam tijolos, derrubavam e serravam
árvores para preparar o madeiramento para
a construção da “Collégio São José”,
entendiam que a escola era um conjunto de
esforços de toda a comunidade. Muitos
colaboradores puderam dizer, entre si, que
cooperavam com os trabalhos da
construção porque ela atenderia a todas as
famílias das comunidades.
A obra foi concluída. Apesar disso,
não correspondeu aos anseios gerados
pelas promessas feitas. A escola,
construída com doações e empenho
comunitário, em nenhum momento,
efetivamente, esteve disponível para as
famílias camponesas da região. Essas
aproximações ficavam cada vez mais raras.
Foram poucos os momentos em que esteve
aberta para receber as comunidades do
Vale. No pouco tempo em que funcionou
como escola, acolhia crianças de outras
regiões, de outras realidades e com outros
propósitos.
As instalações lentamente foram
perdendo o sentido para a qual fora
construída. Foi longa a espera. Quem sabe
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os netos ou bisnetos dos que colaboraram
na construção teriam ou estão tendo a
oportunidade frequentar as salas de aula
construídas por seus ancestrais?
Um possível novo envolvimento das
famílias e comunidades camponesas requer
uma sensibilização para perceberem que é
possível projetar expectativas e ter a
certeza de vê-las realizadas. A instalação
da Escola da Família Rural em Olivânia,
inicialmente, como pode ser observado
pelo número de alunos das comunidades
próximas à escola (São Miguel, Cabeça
Quebrada e Duas Barras), foi pequeno, se
comparado com as mais distantes.
Lentamente as famílias foram
reencontrando o sentido das palavras
participação e envolvimento, ao
ressignificarem os esforços das gerações
passadas e incluírem um novo sentido ao
projeto de uma escola que as atendessem e
que se constituísse de referência no
atendimento de suas reivindicações e
materialização de seus projetos.
Recuperar esse nível de consciência
favorece a participação bem como
fortalece o poder de reivindicação da
família e comunidade camponesa
representada no envolvimento voluntário
das pessoas em participar da elaboração,
desenvolvimento e conclusão dos projetos.
Facilita o entendimento de que a Escola
Família representa os sonhos não
realizados dos seus antepassados, o que
lhes o direito de se sentirem
protagonistas da história da escola e
seguros com os projetos que ela procura
desenvolver com as famílias e
comunidades camponesas. Fortalecem-se
as parcerias e responsabilidades na
educação dos filhos.
A implantação de uma Escola
Família seguia um planejamento
preestabelecido pela diretoria provisória do
Mepes. Incluía a necessidade da aquisição,
por compra ou doação, de uma área com o
mínimo de 150.000m
2
para o
desenvolvimento de projetos de “culturas
demonstrativas” destinadas à formação
técnica das famílias camponesas e à
mobilização para a construção da escola. O
Mepes ficaria encarregado de providenciar
os equipamentos e a formação dos
monitores para o funcionamento da escola.
Toda essa mobilização comunitária passou
por amplos debates, pela conscientização e
envolvimento em um tempo em que as
organizações populares estão impedidas de
se manifestar e o livre arbítrio está
limitado, decorrente do regime de exceção
impostos pelos militares em 1964. Tendo
como base a organização dos agricultores,
foram instalados, nos municípios,
“Comitês Locais”. Sua finalidade era
discutir e mobilizar as famílias camponesas
para a concretização da ideia de instalação
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das Escolas Família Rurais (EFRs)
iv
. Os
“Comitês Locais” foram organizados em
subcomitês de propaganda, encarregados
de divulgar os ideais do Mepes, angariar
recursos para a construção das escolas e
administrar e dirigir a construção das
escolas.
As reuniões que antecederam a
instalação da Escola da Família de
Olivânia eram assinaladas por tentativas e
acertos de incentivos às famílias
camponesas para encontrarem nos seus
problemas o estímulo para resolvê-los. A
escola foi identificada como uma substituta
da ausência do Estado na região. Os
monitores, conscientes da importância da
escola para as famílias camponesas do
Vale, procuravam, além de apresentá-la
como um espaço problematizador das
causas da situação em que viviam fazê-los
entender que a educação, como prática
social, deveria ser vinculada à realidade
das famílias camponesas, ressaltando suas
práticas agrícolas, sua cultura, seus
antepassados, suas crenças e seu “ethos
camponês”. Valores fundamentais à
resistência do camponês que, por meio da
escola, buscou formar, nas famílias
camponesas, a base que sustentaria a
escola que se criava com uma nova
mentalidade comunitária no campo e uma
prática educativa participativa.
Falar sobre a necessidade de
escolarização com as famílias camponesas
que estão mais interessadas em sair do que
permanecer como camponês vai exigir a
adoção de estratégias e ações que
antecederam a criação das Escolas
Famílias. Conforme entrevista com Pe.
Humberto Pietrogrande, o projeto de uma
Escola Família não era a única proposta do
Mepes para as famílias,
a Escola Família fazia parte da
proposta do Mepes. O Mepes nasceu
como um movimento de união das
comunidades de fato, prefeitos
estavam juntos, também deputados.
O Mepes se apresenta como um
movimento de integração nas
comunidades. Então, temos que nos
unir, nos unir, ao redor do projeto.
Então, nós nos unimos em vários
municípios ao redor de um projeto. O
nosso projeto é a Escola Família de
um lado, depois o trabalho
comunitário do outro. Começava com
as mulheres o trabalho comunitário.
(Pe. Humberto Pietrogrande).
A implantação da Escola Família de
Olivânia percorre um caminho de
aproximação com o poder público
municipal, por meio das prefeituras dos
cinco municípios envolvidos com as ações
do Mepes e da Legião Brasileira de
Assistência. Posteriormente, essas
aproximações se estendem ao poder
público estadual. Quanto à cessão do
prédio para a instalação da Escola Família
em Olivânia, Pe. Humberto Pietrogrande
afirma em entrevista,
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nós tínhamos relacionamentos com a
LBA, com o diretor da LBA no
Espírito Santo, Dr. Delizart Santos. A
LBA tinha Olivânia que era uma
escola-problema. Ela era no interior e
não conseguia fazer funcionar. Então
nos fizemos um acordo para poder
usar a escola com a LBA e ainda
hoje, até hoje mantém Olivânia. Não
é ainda cedida para o Mepes e, dentro
deste acordo, que é de ano a ano, é
renovado. Então, Olivânia era a
escola destinada a acolher os jovens
que voltavam com o Mário Zuliani.
(Pe. Humberto Pietrogrande).
Os subitens 1, 3 e 4, do item I do
Regimento Interno Provisório das Escolas
Famílias Rurais, legitimam a ação
comunitária presente com suas finalidades
nos seguintes termos:
1. A Escola Família Rural é o
ambiente onde se encontram, numa
ação comunitária, as exigências do
jovem agricultor, as
responsabilidades e os recursos da
comunidade para a promoção do
homem do campo, da família rural e
da comunidade toda. 3. Na realização
desta finalidade a escola família rural
fundamenta a própria metodologia na
alternância, no internato e na ação
comunitária. 4. A escola família rural
nasce da colaboração do MEPES, da
Comunidade local e das famílias, por
isso a escola é escutada por um
Conselho administrativo formado por
um diretor, nomeado pelo MEPES,
por 3 representantes da Comunidade
local eleitos pelo Comitê local do
MEPES e por 3 representantes da
Associação de pais dos alunos,
eleitos pela Associação. (Mepes,
1968, p. 1).
As demonstrações de ousadia do
movimento eram acompanhadas por
manifestações de precaução das famílias
camponesas do Vale, motivadas por dois
fatores que eram uma realidade que todos
conheciam: a) o prédio pouco funcionou
como escola e, quando o fez, atendeu a
crianças sem qualquer vínculo com as
comunidades do entorno, mesmo que
pautassem suas atividades na produção
agrícola; b) a criação de uma escola
agrícola remetia sempre à imagem de
técnicos agrícolas formados em escolas
rurais distantes da realidade que estavam
orientando. Utilizavam conhecimentos
puramente teóricos para a realização de
projetos que, naturalmente, não foram
produtivos, pois não se adequavam àquela
realidade. Em que o projeto de Escola
Família Agrícola se mostrava diferente?
Essa era uma questão a ser respondida pelo
Mepes às famílias camponesas do Vale.
A Escola Família de Olivânia iniciou
suas atividades, porém, para ser
concretizada,
foi preciso confiança, energia,
perseverança para plantar a semente.
Foram cuidados que hoje não
aparecem, pois foram pequenos,
como é a cova em que se planta a
semente. Foram trabalhos que
dependeram de muita generosidade e
gratuidade de muitos nas
comunidades e de voluntários que
acreditavam no projeto. Trabalho
preliminar, lento, pequeno, porém
que rendeu frutos. (Irmã Augusta de
Castro Cotta).
Desse modo, após amplas atividades
preparatórias de caráter comunitário, o
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camponês se conscientiza de que o segredo
do desenvolvimento da comunidade está na
união que se constrói por iniciativas
comunitárias. Essa união vai concretizar a
construção e implantação das primeiras
escolas em Alternância no sul e norte do
estado. As escolas atendiam aos alunos
provenientes das famílias camponesas com
um curso bienal, um ritmo de frequência
todo especial, quer dizer: alternando duas
semanas de internato (com sete ou oito
aulas por dia) e duas semanas de
experiências em casa. Assim, cada escola
atenderia alternadamente, no sistema de
internato, duas turmas de 20 jovens cada
uma: uma turma de primeiro ano e a outra
de segundo ano.
Além dessas escolas, iniciou-se uma
quarta escola para a formação de monitores
agrícolas. Eram alunos egressos das
Escolas Famílias em funcionamento.
Cursavam mais um biênio de
aprofundamento de especialização agrícola
e mobilização comunitária, sempre com o
método de alternância escola -
comunidade. Esses monitores eram
capacitados para lidar com as comunidades
na técnica agrícola e cooperativista, e
alguns deles para ajudar outras escolas a
serem criadas.
No dia 10 de março de 1969, a
Escola da Família Rural de Olivânia inicia
suas atividades, atendendo a 27 jovens com
o Curso Supletivo, com uma
complementação de formação de
“Agricultor Técnico” em dois anos de
curso. No ano de 1975 não foram
realizadas matrículas, pois no ano seguinte
se iniciaria o curso profissionalizante de 2
o
grau “Técnico de Agropecuária”. No ano
de 1977 começa a primeira turma de
ensino do 1
o
grau com a inclusão no
currículo de conteúdos específicos de
agricultura e pecuária.
A Escola da Família Rural de
Olivânia, ao optar pela formação
profissional, visava
formar agricultores técnicos e não
técnicos em agricultura. Razão por
que tomou-se como base a situação
em que se encontram os jovens
rurais, sem causar choque com o
ambiente em que vivem. O sistema
empregado virá proporcionar mais
intercâmbio entre a família e a
escola, utilizando o próprio jovem
para um desenvolvimento integral e
harmônico da área. Assim, família,
jovem e escola, formam um conjunto
que agem simultaneamente no
aprimoramento da pessoa humana e
do meio em que vivem,
possibilitando o aproveitamento de
maior capacidade no próprio meio
rural. (Mepes, s./d., p. 23-24).
Apresenta princípios e uma
metodologia própria que a distinguem das
escolas com as quais o camponês
raramente convivia: alternância, internato,
Plano de Estudo, currículo específico, ação
direta nas comunidades, serões culturais,
viagens de estudo, encontros, estágios,
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aproveitamento dos recursos materiais e
humanos da comunidade, aulas práticas e a
associação dos pais.
A Escola Família era apresentada
para a família camponesa de forma simples
e de fácil compreensão. Folhetos
explicativos, com desenhos e conteúdo
resumidos, mostravam a Escola Família e
sua metodologia com os seguintes
argumentos:
Escola Família. Você encontra uma
nova metodologia. Muitas são as
atividades. Na escola: grupos de
trabalho para preparo do Plano de
Estudo. Discussões de solução dos
problemas agrícolas e da
comunidade. Em casa: você observa
a sua realidade, estuda a situação,
descobre o porque’ das coisas. 15
dias na escola. Aulas com discussão
entre alunos e professores. 15 dias na
propriedade, no trabalho diário e no
entrosamento e divertimento na vida
comunitária. Através deste método
também os conhecimentos mais
abstratos ficam claros e
compreensíveis. (Mepes, 1969).
A mensagem direcionada às famílias
era um apelo para que os filhos
retomassem os estudos, agora nas Escolas
Famílias. A mensagem afirmava que
“dinheiro, propriedade, posição e uma
infinidade de coisas que você vai deixar-
lhe, ele pode perder: mas o estudo, não:
este ninguém lhe tira!”. (Mepes, 1969).
Nos últimos meses de 1968,
intensificam as campanhas para as
matrículas nas Escolas Famílias de Alfredo
Chaves, para candidatos com idade entre
17 anos e 20 anos. Para ingresso na
referida escola, havia a exigência que o
candidato fosse procedente de famílias
camponesas e quisesse ser camponês. Era
exigido o curso ginasial ou o ensino
primário no mínimo. Estes seriam
formados para serem os futuros monitores
das Escolas Famílias que estavam previstas
para serem instaladas.
Em Olivânia, nesse mesmo período,
a situação jurídica do direito de posse da
propriedade sofre mudanças. O estado do
Espírito Santo transfere mediante uma
escritura pública de doação, datada de 15
de abril de 1969, o terreno e as suas
benfeitorias para a Legião Brasileira de
Assistência. A Obra Social de Formação
Agrícola Dom Helvécio” funcionava em
instalações e propriedade do estado. Com a
transferência do direito legal sobre a
propriedade, a LBA assina um termo de
comodato, renovável a cada ano, com o
Movimento de Educação Promocional do
Espírito Santo, entidade jurídica à qual a
Escola da Família Rural de Olivânia estava
vinculada. Na cláusula terceira, letra c, do
Instrumento Particular de Comodato, o
Mepes se compromete a utilizar o prédio e
a propriedade para fazer funcionar nas
instalações, exclusivamente, uma escola.
Sua utilização específica para atender
à juventude e famílias camponesas do
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Vale, comunidades do entorno e
municípios próximos atesta que os
defensores da proposta da criação de uma
escola na região estavam corretos. Para
compreendermos o significado da criação
das Escolas do Mepes, é preciso entender
em que circunstâncias históricas a Escola
da Família Rural de Olivânia é criada. Em
momentos que imperam as deliberações de
um Estado Militar repressor, a proposta
educacional defendida pelo Mepes se
caracteriza por seu movimento contra-
hegemônico ao projeto educacional estatal
e contrário ao discurso da inviabilidade das
atividades agrícolas nas unidades de
produção familiar camponesa.
Em que conjuntura educacional
convive a família camponesa? Que relação
existe, nesse período, entre os projetos
educacionais do Estado brasileiro e o
campesinato? Uma resposta, das muitas
possíveis, passa por uma análise da
situação em que vivia parte significativa
das famílias camponesas no Brasil: o
abandono de suas origens, identidades e de
sua condição de camponês para viver nas
cidades. Conduzindo na bagagem suas
fantasias, abandona uma vida que cada vez
mais se mostrava inviável. Convicto das
verdades disseminadas em profusão pela
propaganda do crescimento das
oportunidades nas cidades construía, no
seu imaginário, toda a generosidade de
uma cidade abundante e pujante, na qual só
não teria sucesso aquele irreparavelmente
comprometido com a preguiça. Esse
propagado e imaginado “mundo novo”
constava das cartas transcritas pelos
parentes e amigos que para a cidade tinham
se deslocado para “tentar a sorte”, e
também enriqueciam essas informações em
conversas de botequins com os parentes
que retornavam para algumas visitas.
Porém, não eram todos “que se dirigiam às
cidades em busca de melhores condições
de vida obtiveram o sucesso esperado,
acarretando o surgimento de graves
problemas sociais entre esta população”.
(Calazans, 1979, p. 1).
As implicações do esvaziamento do
campo e a descaracterização do modo de
vida do campesinato eram assinaladas por
Sousa (1950), ao afirmar que
a urbanização exagerada do Brasil,
tomada essa palavra no sentido da
deturpação dos hábitos simples, da
destruição dos costumes severos e
das normas de vida de trabalho dos
nossos antepassados, está criando
problemas à administração pública,
que uma volta às atividades
regeneradoras e produtivas do campo
pode remediar. (p. 1104).
Na medida em que as escolas
públicas são instaladas no meio rural, um
discurso sempre as justifica, que se resume
na tentativa de amenizar os graves
problemas de exclusão educacional e,
principalmente, parte da intenção de
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aproximar o campesinato da expansão do
mercado agrícola interno. Objetivos
semelhantes explicam o aumento de
projetos públicos na tentativa de expansão
das escolas na cidade. A finalidade dessa
expansão é atender à necessidade de uma
mão de obra qualificada indispensável para
acompanhar as modificações que ocorrem
nos setores produtivos industriais urbanos.
Independentemente de a expansão ocorrer
no campo ou na cidade, os projetos são
sempre pensados e gerenciados por uma
minoria que, alheia à marginalização de
muitos, perpetua os benefícios e as
riquezas geradas. São projetos que se
constituem indiferentes às dificuldades e
necessidades da população urbana e do
campesinato. Focalizando especificamente
a realidade camponesa, Szmrecsányi e
Queda (1979) afirmam que a legislação e
os programas educacionais, com
pretensões de atender às reivindicações do
campesinato, estavam claramente
vinculados
tanto à estrutura de propriedade e de
poder do subsistema social rural,
como às relações entre este e outros
subsistemas, quer internos, quer
externos à sociedade em questão, são
vistas aqui, não apenas como
instrumentos de política agrícola e
econômica, mas também como
produtos institucionalizados da
evolução histórica do sistema
econômico e político da sociedade
brasileira. (p. 216).
A Escola da Família Rural de
Olivânia procura, a partir de sua criação,
desenvolver um trabalho específico e
localizado para obter respostas aos
problemas concretos das comunidades e
das famílias camponesas. Nos momentos
iniciais, a escola começou a funcionar com
um curso de dois anos de duração, em
caráter supletivo, conferindo ao
concludente o diploma de “Agricultor
Técnico”. O curso atendeu,
exclusivamente, a filhos de camponeses e
tinha como finalidade transmitir uma base
mínima de cultura geral e uma iniciação
técnica para o trabalho no setor agrícola.
Era um curso informal, que respondia aos
anseios de educação expressos pelas
comunidades não atendidas pelo sistema
oficial de ensino. Após a implantação do
curso, as famílias começam a
problematizar se o curso não poderia ter
um reconhecimento oficial. O Mepes
obtém o registro na Secretaria de Educação
e Cultura, pelo Parecer do Conselho
Estadual de Educação do Espírito Santo
(CEE/ES) n
o
19/71, de 8 de fevereiro de
1971.
Conforme o referido parecer, o curso
oferecido era realizado em quatro
semestres e sua estrutura curricular
permitia aos alunos a observação, reflexão,
a aprendizagem de conhecimentos gerais e
técnicos e a experimentação. Segundo o
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mesmo parecer, o curso ministrado em
Olivânia, tinha a intenção de
restabelecer nos alunos um nível de
conhecimento necessário ao
entendimento e ao acompanhamento
das matérias curriculares e à
compreensão humana e social
relativa ao grau de escolaridade que
se pretende implantar, há, no inicio
do curso, um período de nivelamento
durante o qual são ministradas, de
maneira intensiva, aulas de
Português, Matemática, História do
Brasil e Geografia, além de
conhecimentos gerais. (CEE/ES,
1972, p. 238).
Pelo Parecer do CEE/ES, n
o
24/71
ficavam abertas as possibilidades para o
reconhecimento e autorização da
equivalência do curso ministrado na escola
para a 5
a
e 6
a
série do ciclo ginasial, como
previsto na LDB n
o
4.024/61. A Escola da
Família Rural de Olivânia é autorizada,
assim, a expedir certificados para que o
jovem camponês possa dar sequência aos
seus estudos em outros estabelecimentos.
Em seguida, as famílias, atentas às
dificuldades de seus filhos continuarem os
estudos em outros estabelecimentos e
compreendendo o real significado do que
representava a Pedagogia da Alternância,
reivindicam que o Mepes amplie a duração
do curso para três anos, para que seus
filhos concluam o 1
o
grau na Escola da
Família Agrícola de Olivânia
v
e nas demais
Escolas Famílias do Mepes instaladas em
outras comunidades camponesas no estado
capixaba. Considerando o curso ainda sob
os fundamentos do ensino supletivo, o
CEE-ES, por meio do Parecer do n
o
130/1974, amplia a autorização concedida
ao Mepes pelo Parecer n
o
24/71 e aprova o
funcionamento da Escola da Família
Agrícola de Olivânia e demais Escolas
Famílias, em regime especial, podendo os
concludentes, conforme seu
aproveitamento, receber certificado de
conclusão do curso supletivo no nível de 1
o
grau.
Permanecem as mobilizações e as
reivindicações das famílias camponesas
pela continuidade dos estudos de seus
filhos na Escola de Olivânia. O 2
o
grau
profissionalizante, previsto na LDB n
o
5.692/71, passa a ser um tema recorrente
nos encontros realizados com as famílias e
comunidades camponesas com as quais a
escola mantinha contatos. A primeira
turma do curso Técnico de Agropecuária
inicia suas atividades em 1976 e em 2003 a
última turma dessa modalidade realiza sua
festa de formatura. Nesse mesmo ano,
também foi criado o curso de 1
o
grau com
a oferta de matrículas para 5
a
, 6
a
, 7
a
e 8
a
séries. Pelo Parecer n
o
40/78 do CEE/ES,
de 10 de abril de 1978, ficava autorizado o
funcionamento do curso de 2
o
grau para a
formação de Técnico em Agropecuária na
Escola cnica da Família Agrícola de
Olivânia.
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Os cursos de 1
o
grau e 2
o
grau
profissionalizante funcionavam conforme
as características da metodologia que
vinha sendo adotado nas Escolas Famílias
do Mepes, isto é, com o regime de
alternância que previa a permanência na
escola, em regime de internato por
períodos de 15 dias alternados com a
vivência nas famílias ou em propriedades
agrícolas, também por períodos de 15 dias,
dedicados aos estudos e trabalhos práticos
na escola. O reconhecimento legal,
conforme publicado no Diário Oficial
estadual, do curso Técnico de
Agropecuária e ensino de 1
o
grau em
Olivânia, por parte do CEE/ES, nos termos
do art. 64, da LDB n
o
5.692/71, ocorre por
intermédio da Resolução n
o
114/84.
A manutenção dos períodos de
alternância de 15 dias contrariava uma
recomendação do Parecer 40/78, que
autorizava o Mepes criar um Curso
Técnico em Agropecuária em Olivânia.
Segundo o parecer,
a alternância de 7 por 7, ficaria, é
bem verdade, um pouco mais onerosa
para a família no tocante ao
deslocamento dos jovens. Mas, já que
a taxa alimentar é paga por quinzena,
não altera desse modo o total anual.
Na alternância 7 por 7 a escola
reduziria os semestres letivos para 6,
inclusive o estagio. Uma semana em
casa facilita o processo de ensino
aprendizagem. Quinze dias nos
parece um tempo um pouco longo
para consolidar o conteúdo das aulas
teóricas ministradas. Para a própria
escola o regime de 7 por 7 nos parece
interessante à primeira vista, pois nos
finais de semana seria possível
atingir um maior número de
povoados para a visita às famílias.
(CEE/ES, 1978, p. 5).
O sistema de alternância de 15 dias
vai ser mantido até 1997, quando o foi
modificado para o regime semanal de
estada na escola e na família, conforme
sugeria o CEE/ES, no Parecer 40/78.
Segundo Zamberlan (2004), as
justificativas para a alteração
fundamentaram-se mais em fatores
funcionais que pedagógicos, pois os
monitores tinham dificuldade de
permanecer com as (os) jovens nos fins de
semana na escola, que não tinham como
ir para casa no sábado e retornar na
segunda-feira cedo, devido às distâncias.
Também alguns monitores moravam longe
da EFA” (p. 81). Nas noites de sábado,
eram realizados bailes nas dependências da
escola como estratégia para motivar as
aproximações entre as famílias
camponesas residentes no Vale e as da
escola. Os jogos de futebol, realizados no
campo da escola, reuniam aos domingos e
feriados, times das comunidades para
competições com os alunos e monitores
que permaneciam na escola.
A partir de 1976, a Escola Técnica da
Família Agrícola de Olivânia amplia sua
área de atuação com a implantação do 2
o
grau Técnico em Agropecuária. Passa a
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atender não somente à juventude
camponesa do Espírito Santo, mas também
de outros estados, principalmente, os
jovens oriundos da Bahia, Piauí e
Maranhão. Podem-se destacar alguns
motivos que ajudam explicar a ampliação
do atendimento para as comunidades e
famílias camponesas de outras regiões
brasileiras. A principal razão consiste no
fato de a Escola de Olivânia ser a pioneira,
no Brasil, na criação do 2
o
grau
profissionalizante com a denominação de
“Técnico em Agropecuária” conforme
previsto na
5.692/71.
A Escola Técnica da Família
Agrícola de Olivânia se constitui, a partir
de 1976, no ponto de aspiração de jovens
camponeses que encontram, nesses
espaços, a possibilidade de continuidade de
seus estudos, mesmo se mantendo distantes
de seus locais de convivência comunitários
e familiares, entretanto, eram
oportunizadas possibilidades de
conhecerem realidades distintas das que
estavam familiarizados nas suas
comunidades de origens. Aproximavam-se
de uma prática recorrente adotada pelas
famílias e comunidades camponesas, para
o ingresso na Escola de Olivânia, uma vez
que essa decisão era discutida entre os
familiares e referendada nas comunidades
de origem, normalmente sob a
coordenação de um padre e após os
encontros religiosos realizados nessas
comunidades.
Esses jovens, capixabas ou de outros
estados, ao demonstrar seus desejos de
sequência de estudos, assumiam, perante
seu grupo familiar e sua comunidade, o
compromisso de buscar, nos espaços da
Escola Família Agrícola de Olivânia, a
oportunidade que não tinham disponível
em seus locais de origem. Percebiam que
essa oportunidade contemplava um número
reduzido de jovens de suas comunidades, o
que representava uma enorme
responsabilidade perante o grupo de
convívio. A comunidade, com expectativa,
participava ativamente de todo o processo
de decisão, ao acompanhar os debates
internos nas famílias sobre a possibilidade
de um, ou mais, de seus jovens, atingirem
o desejo que acompanhava muitos outros
membros das famílias na comunidade. Era
uma decisão compartilhada com a
comunidade e, em inúmeras oportunidades,
colaborava para que a materialização do
projeto se efetivasse, pois significava
aquilo que a própria comunidade desejava.
Essa cumplicidade pode ser compreendida
mais profundamente, uma vez que uma
comunidade camponesa é um espaço
multifacetado de múltiplos significados e
atribuições. É, conforme Tedesco (1999),
o espaço do jogo de trocas que,
através de acordos e conflitos, tece a
convivência de uma lógica de
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integração que passa pela
participação, pelo afeto,
conhecimento mutuo, vizinhanças e
mutirões ... partilha, experiência
coletiva na individualidade,
delimitações de espaços, símbolos de
identidade de gênero, enfim, um
espaço cultural e social, mais que
econômico. (p. 90).
Com referência à família camponesa,
as pesquisas mostram que o consentimento
para o filho se tornar estudante passava,
principalmente, por todo o grupo familiar,
que se conscientizava de que assumiria,
a partir da decisão tomada, o compromisso
de substituir a força de trabalho do
filho/filha que se ausenta da família para
estudar. Outro fator que ajuda explicar a
decisão é principalmente a compreensão,
por parte da família, de que a atividade
escolar também se constituía em uma
forma equivalente de trabalho. A
concordância era obtida, uma vez que a
escola era entendida, sobretudo, como
espaço de valorização das atividades
desenvolvidas pelas famílias, constituindo-
se um prolongamento dessas tarefas,
habitualmente, executadas por seus
membros. Assim, as famílias acrescentam
um novo elemento para justificar o
ingresso do filho na escola, além dos
manifestados pelos monitores.
Compreendem a escola a partir da
valorização e sequência das tarefas
executadas pelo filho junto aos familiares.
Em outras palavras, a Escola Família
Agrícola de Olivânia não era,
simplesmente, “incorporada
necessariamente nos termos supostos, mas
nos termos próprios das classes sociais
rurais”. (Martins, 1981, p. 253).
Outro aspecto interessante aponta
que o regime de alternância entre os
tempos escolares e familiares permitia que
os jovens que tinham suas famílias
residindo em outros estados passassem a
morar com as famílias próximas à escola.
Eles desenvolviam suas experiências e as
atividades didáticas previstas para as
sessões familiares junto às famílias que os
acolhiam. Ao mesmo tempo, ofereciam sua
força de trabalho como diaristas, tarefeiros
ou assumindo lavouras em parceiras com
as famílias que os acolhiam no Vale.
Situação que ocorria para muitos jovens
que residiam em outros estados e
retornavam apenas nos períodos de férias
escolares ou com a conclusão do curso.
Essas longas ausências eram decorrentes
das distâncias que deveriam ser percorridas
para seu retorno ao convívio familiar e
comunitário. As permanências nos espaços
escolares e comunitários geravam uma
complexa rede junto às famílias das
comunidades próximas à escola para
acolher os jovens nos períodos de
alternância familiar. Segundo
entrevistados, eles passavam 15 dias na
escola e outros 15 dias e
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não tinham como voltar para o
Maranhão, para o Piauí. Eles ficavam
nas casas das famílias. Permaneciam
na comunidade. Isso reforçava essa
aproximação com a comunidade e
com as famílias. Na verdade eram
adultos, não eram crianças como é
agora. (Daniel e Maria Dalmagro).
A Escola Família Agrícola de
Olivânia prossegue ofertando turmas para
as séries finais do ensino fundamental no
transcorrer das mudanças no Ensino Médio
Profissional. Em 2002 o curso técnico
passa a ser ofertado na modalidade
sequencial e concomitante com habilitação
de Técnico em Agropecuária com duas
qualificações profissionais: Fruticultor
Familiar e Processador de Agroindústria
Familiar. Essa modalidade foi mantida até
2007. Entre 2006 a 2009, é mantida a
habilitação de Técnico em Agropecuária.
Foram extintas as qualificações anteriores
e criadas duas novas: Fruticultor Familiar e
Empreendedor em Agroturismo. Em 2011,
a formação técnica recebe a denominação
legal de Educação Profissional de nível
médio com a oferta do curso técnico com
em Agropecuária, com ênfase em recursos
naturais, realizado em quatro anos.
Assim, pouco a pouco, a Escola
Família Agrícola de Olivânia vai
retomando seu projeto original e passa a
atender jovens do Vale, de comunidades
camponesas de municípios próximos e,
mais recentemente, passou a acolher,
também, jovens que não possuem vínculo
com atividades agrícolas típicas. O
principal motivo consiste numa tentativa
da escola em estabelecer articulações com
famílias que, mesmo não possuindo
relações com as inúmeras atividades que se
consolidam no campo, demonstram forte
desejo de participar do seu projeto
educativo alternativo, conforme
expressaram em conversas informais
durante o período das pesquisas.
A interrupção do convívio familiar é
equilibrada pela possibilidade de serem
protagonistas, família e educandos, de uma
etapa da luta por uma educação praticada a
partir da realidade camponesa e da
possibilidade de estarem inscritos nos
caminhos da autoafirmação e da
conscientização dos que lutam no campo e
se encontram marginalizados da maioria
dos programas destinados aos contextos
agrícolas por se destinarem, quase
exclusivamente, aos projetos
agroexportadores.
As terras ocupadas por atividades
agrícolas cumprem as seguintes
finalidades: a) servir de instrumentos
didáticos pedagógicos para formação
técnica dos educandos; b) ser produtiva
para atender à demanda de consumo
interno e/ou comércio, para subsidiar os
projetos de melhoria das atividades
agrícolas desta; c) funcionar como centro
motivador e divulgador de tecnologias de
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viabilidades para agricultura camponesa; e
d) servir de laboratório para experimentos
e produção de técnicas alternativas
agroecológicas.
A Escola Família Agrícola de
Olivânia desenvolve suas ações
educacionais e comunitárias convivendo
com espaços distintos de aprendizagem nos
contextos camponeses. Para compreender
melhor esses espaços, recorremos a
Brandão (1980; 1983; 1985). Pesquisador
das mediações entre Educação Popular e
Cultura Popular produz preciosos estudos
abordando os aspectos dos espaços de
aprendizagem que coexistem com e nas
comunidades e famílias camponesas.
Sugere três categorias. A primeira,
denominada de “Educação do Sistema”
enquadra-se como “reprodutora da ordem
social estabelecida, sobretudo através do
trabalho de mediadores do poder de
Estado, sendo, portanto, colonizadora”.
(Brandão, 1985, p. 96), reproduzindo,
“através do saber e dos valores que
transmitem de uma classe social a outras
uma força de trabalho instrumentalizada
e valores de sistema re-utilizados”.
(Brandão, 1980, p. 31).
Reproduz ideologicamente os valores
da classe dominante com características de
uma intervenção educacional impositiva,
assistencialista e carregada de paternalismo
e com uma imagem do símbolo do
progresso e da modernização. Um projeto
educacional que em nada se aproxima de
uma prática educacional conscientizadora.
É destinado, conforme afirma Betto
(1979), “explicita ou implicitamente, a
impedir que os setores populares, sejam
sujeitos de seu destino histórico e força
hegemônica de um processo alternativo
global”. (p. 163).
Ao analisar as iniciativas oficiais
envolvidas com a educação, Brandão
(1985) sublinha que essas ações, quase na
sua totalidade, apresentam como
características o propósito de educar as
classes populares proporcionando “ao
poder o serviço político de reproduzir e
inculcar a disciplina e as ideias da
legitimidade do domínio sobre
camponeses, lavradores, boias-frias e
operários”. (p. 100).
Em outras palavras, conforme
sublinha Brandão (1985) a “Educação do
Sistema” não tem outra finalidade, a não
ser “manter sob controle os seus
participantes, empregando os próprios
recursos do ‘interesse de aprender’ como
um instrumento de difusão de ideias que
legitimam uma ordem social de
dominância”. (p. 100).
Nos espaços de aprendizagem em
que está inserida a família camponesa, esse
mesmo autor identifica, nas práticas de
educação com características comunitárias,
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a segunda categoria, que domina de
“Educação Popular”. Essa prática
pedagógica de compromisso político e
proposta conscientizadora efetivada nas e
com as comunidades populares é
realizada através do trabalho de
mediadores comprometidos com projetos
de serviço ao fortalecimento do poder
popular e, portanto, a serviço do
colonizado”. (Brandão, 1985, p. 100). Um
documento intitulado “La Educación
Popular Hoy em Chile: Elementos para
Definirla”, citado por Brandão (1986),
salienta que as
práticas de educação popular
representam desde a vontade de
criar espaços autônomos, espaços nos
quais o manejo do poder se realize
em forma compartida, dentro de uma
crescente relação entre iguais. Nesta
perspectiva as opções metodológicas
adquirem relevância especial. A
busca de formas educativas de caráter
participativo, de reflexão coletiva da
prática dos próprios autores, do
desenvolvimento de relações de
solidariedade entre os membros, a
superação dos dogmatismos e
preconceitos, etc., constituem
opções-chave neste sentido. (p. 72).
A prática educacional popular de
formação em Alternância deve se
distinguir por efetivos atos de
reagrupamento de forças teórico-práticas,
materializadas na valorização de uma
educação, na perspectiva freiriana,
problematizadora e transformadora da
realidade vivida pela família camponesa,
provocando, assim, a transição de uma
aprendizagem passiva para uma
aprendizagem participativa, questionadora,
crítica e criativa. Também deve incentivar
o desenvolvimento da autonomia e da
intervenção na realidade rural de forma
consciente. Consideramos importante
ressaltar o conteúdo problematizador da
Pedagogia da Alternância, comprometida
com sua realidade de inserção, na
formação dos futuros agentes de
desenvolvimento rural em diferentes
movimentos de ações levadas à prática por
meio de estratégias condizentes com as
suas reais exigências.
A terceira categoria de prática
pedagógica de aprendizagem com que
coexiste a Escola Família Agrícola de
Olivânia é denominada por Brandão de
“Educação de Classe”. Defende o autor,
que não existe uma “forma única nem um
único modelo de educação; a escola não é
o único lugar onde ela acontece e talvez
nem seja o melhor; o ensino escolar não é a
sua única prática e o professor profissional
não é o seu único praticante”. (Brandão,
2007, p. 20). Além disso, não é a escola
que se constitui de espaços formativos,
mas também a família, pois a práxis
pedagógica inclui, sobretudo, a
reafirmação do caráter educativo, agora
potencializado nas relações entre práticas
escolares e saberes instituídos nas gerações
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familiares que, por sua vez, desempenham
papel essencial no fortalecimento da
ligação sentimental com as experiências
ancestrais.
Em estudos realizados com famílias
camponesas sergipanas, Woortmann e
Woortmann (1997), colaboram com suas
afirmações para compreendermos o
significado da transmissão do saber a partir
das atividades do trabalho desenvolvidas
pelas famílias com seus filhos.
Independentemente de qual trabalho esteja
sendo desenvolvido, o pai ou a mãe define
os caminhos para que o processo de
aprendizagem ocorra satisfatoriamente. No
caso específico da aprendizagem
conduzida pela figura paterna, esses
autores sublinham que “a transmissão do
saber para o trabalho faz-se no próprio
trabalho pois o saber é um saber-fazer,
parte da hierarquia familiar subordinado
ao chefe da família, via de regra o pai. Se é
este que governa o trabalho é ele também
que governa o fazer-aprender”.
(Woortmann e Woortmann, 1997, p. 11).
A articulação mútua dos saberes
familiares, em uma configuração
educativa, desenvolve uma linguagem
interna própria que facilita a aprendizagem
dos filhos, principalmente nos sistemas de
trabalho adotado pela família que se
atualiza e se traduz constantemente. Nas
atividades destinadas aos “homens da
casa”, o pai ensina aos filhos o que
aprendeu com seu pai, o uso das
ferramentas, a limpeza das roças, o cultivo
do alimento, “a usar o arado mais fundo ou
não, abrir covas mais fundas ou não, o que
é peste e o que não é. O que serve de
adubo e o que impede o desenvolvimento
normal da planta. (Tedesco, 1999, p. 97),
gerando uma atualização permanente, por
meio de inclusões adaptadas à sua
racionalidade produtiva, dos novos
conhecimentos adquiridos e uma
racionalidade produtiva tecida pelas
gerações familiares passadas.
Uma aprendizagem que se vincula,
em determinadas circunstâncias, às
atividades do trabalho desenvolvidas nas
famílias e nas comunidades. Uma
aprendizagem na qual “os mais velhos
fazem e ensinam e os mais moços
observam, repetem e aprendem. (Brandão,
1986, p. 19). em outras situações, estão
imersas nos rituais familiares ou
celebrações comunitárias nas quais as
pessoas oram, confabulam, “cantam,
dançam e representam, e tudo o que fazem
não apenas celebra, mas ensina. Ritos são
aulas de codificação da vida social e de
recriação, da memória e da identidade dos
grupos humanos”. (p. 19).
A transmissão dos conhecimentos e
técnicas sociais antecede à formação dos
primeiros grupos humanos. Ela advém,
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segundo Saviani (2007), de momentos em
que a cultura se transmitia
por processos diretos, oralmente, por
meio de contatos primários no
interior da vida cotidiana. E isso não
apenas nas relações entre os adultos e
as crianças e jovens. Em qualquer
idade e tipo de relação social era
possível apreender, convertendo a
todos, de algum modo, à posição de
mestres. Mas ocupavam posição de
destaque no processo educativo as
preleções dos ‘principais’, isto é,
daqueles que tinham atingido a idade
da experiência... . Suas exortações
cumpriam o papel de atualizar a
memória coletiva, preservando e
avivando as tradições tribais. (p. 38).
Ainda conforme Saviani (2007), no
Brasil, nos momentos que antecedem à
chegada do processo colonizador europeu,
convivia-se com a prática de uma
“Educação em Ato”, que se aproxima da
“Educação de Classe” proposta por
Brandão (1980; 1983; 1985). Os dois casos
se sustentam sobre três elementos básicos:
a força da tradição, constituída como
um saber puro orientador das ações e
decisões dos homens; a força da
ação, que configurava a educação
como verdadeiro aprender fazendo; e
a força do exemplo, pelo qual cada
indivíduo adulto e, particularmente,
os velhos ficavam imbuídos da
necessidade de considerar suas ações
como modelares, expressando em
seus comportamentos e palavras o
conteúdo da tradição tribal. As ideias
educacionais coincidiam, portanto,
com a própria prática educativa, não
havendo lugar para a mediação das
ideias pedagógicas que supõem a
necessidade de elaborar em
pensamento as formas de intervenção
na prática educativa. Nessas
condições havia, pois, educação, mas
não havia pedagogia. (Saviani, 2007,
p. 38).
No universo camponês, por suas
características peculiares, o conhecimento
para a execução das tarefas é transmitido
por gerações, de tal modo que o pai,
possuidor da representação simbólica do
saber transmitido pelos seus antepassados,
“ensina cedo aos filhos a dominar os
saberes sobre a produção e as mães
repassam seus conhecimentos para as
filhas através da execução das tarefas a
elas designadas na divisão sexual do
trabalho”. (Caliari, 2012. p. 142). Desse
modo, o jovem camponês,
prematuramente, entra em contato com a
aprendizagem “do como fazer” pautado
nas atividades desenvolvidas por sua
família. Uma aprendizagem que vem de
muito tempo na família e acaba
corporificando-se como algo próprio da
família ou, como sublinha Brandão (1995)
“quando um pai trabalha no campo com
três ou quatro filhos, algumas rápidas, mas
fecundas situações de ensino motivado
eram vividas entre um pai que ensina e um
filho que aprendia”. (p. 132). Esse
conhecimento exclusivo é pautado pela
elaboração dos pais e/ou de suas
ancestralidades.
Vale lembrar que as estratégias de
“trocas”, entre os membros das famílias
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camponesas, desses saberes, foram
elaboradas e consolidadas mediante um
processo de observação, experimentação e
cessão dos resultados às gerações
seguintes, como descreve Brandão (1995),
ao narrar a maneira como um pai
boiadeiro, ao “juntar o gado” com a ajuda
de seu filho, transmitia por meio de um
“canto do trabalho”, os ensinamentos para
o jovem aprendiz que, mesmo não
conseguindo acompanhar o pai, era
persistente em querer aprender. Para
transmitir seus conhecimentos, o pai valia-
se de cantorias, gritos cadenciados e
assovios ritmados que, agrupados,
formavam uma “linguagem que o velho
ensina ao pequeno boiadeiro para que um
dia um seja como o outro. Canto do ofício
que o filho aprende enquanto trabalha, para
ser um dia como o pai”. (Brandão (1995, p.
8).
Manifestações de conhecimentos
elaborados e aprimorados pela observação
e transmitidos por gerações podem ser
observadas no Vale. Podemos citar o
exemplo que se refere à capacidade de
identificação dos tipos de solo nas terras da
família. Nessas observações, geralmente
realizadas pela figura do pai, considerando
que ele acumula, ao longo da convivência
familiar, saberes dos seus ancestrais, as
avaliações levam em consideração fatores
sempre mais abrangentes do que aquela
que leva em conta apenas a fertilidade
inerente, pois inclui uma verificação do
caráter mais ou menos trabalhável do solo
e das possibilidades de resposta a
melhoramentos”. (Reijntjes, Haverkort &
Waters-Bayer, 1994. p. 58).
Para Brandão (1995), a “Educação de
Classe”, como prática não formal de
reprodução do saber, é elaborada e está
inserida “nos espaços sociais de troca do
modo de vida das classes populares,
quando ali se dão relações através das
quais o saber flui entre pessoas, entre
consciências”. (p. 99-100). Pode ser
compreendida como uma prática
educacional desenvolvida a partir de
saberes elaborados na observação e
repassados por aprendizagens realizadas
entre as gerações que os adaptam ao uso
das necessidades e obstáculos encontrados.
Guiando-se por uma lógica própria nos
espaços de trabalho e no domínio de sua
execução, o
camponês recria formas rústicas de
produção. Para cada tipo de atividade
do ciclo rural: o preparo do solo, o
plantio, as ‘limpas’ da lavoura, a
colheita, a estocagem e a circulação
dos bens, há um repertório próprio de
conhecimentos, cuja aparente
rusticidade apenas esconde segredos
e ‘saberes’ de uma grande
complexidade. (Brandão, 1983, p.
16).
Entre espaços de aprendizagem
distintos, como a “Educação do Sistema”,
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que consolida sua prática pedagógica nos
valores da colonização cultural e da
“domesticação pedagógica”, e os espaços
de aprendizagem da “Educação de Classe”,
presente e vivida entre os membros das
famílias, inter-famílias e comunidades
camponesas, a Escola Família Agrícola de
Olivânia e a Pedagogia da Alternância,
pensadas como uma prática popular e
enfatizadas no convívio com os saberes de
domínio dos camponeses, constituem-se de
espaços de mediação entre o currículo
prescrito pelos pareceres oficiais e a
valorização e fortalecimento do
campesinato como produtores de seu
próprio conhecimento (Brandão, 1985).
o que aproxima a família da escola é
a busca do conhecimento. Às vezes a
família tem um conhecimento que a
escola não tem e a escola tem o que a
família não tem. Deve ser uma troca
de conhecimento uma via de mão
dupla. Não é que vai, vem
também. Leva e traz Busca e leva.
(Agostinho Dalmagro).
Valorizar e incorporar esses
conhecimentos como fontes originais do
saber comunitário e saberes formados nas
famílias camponesas se mostra uma
alternativa para se evitar a
“pedagogização” da Alternância. Em
outras palavras, quanto mais a Pedagogia
da Alternância se aproxima da “Educação
do Sistema”, mais ela se escolariza e, como
efeito, menos espaços de incorporação dos
saberes provenientes das famílias e da
participação para as comunidades e
famílias camponesas são gerados. Em uma
direção contrária, quanto se define como
uma prática popular de educação e
encontra nos espaços de aprendizagem
comunitários e familiares a sustentação de
sua práxis pedagógica, mais se fortalece
como prática conscientizadora e
transformadora da realidade camponesa.
Considerações finais
Ao concluir insistimos na afirmação
de que, historicamente, a implantação de
projetos educacionais para o campo sempre
esteve vinculada aos interesses das classes
dominantes e integrada aos modelos de
desenvolvimento econômico que
objetivavam o fortalecimento do capital
monopolista agrícola, no qual as possíveis
formas de envolvimento e a participação
da família camponesa obedeceriam à
abertura de espaços concedidos pelo
Estado. Esse processo está bastante claro,
na medida em que o Estado investe na
escolarização do camponês, considerando a
necessidade de eles serem incorporados
aos novos padrões de produção por meio
da formação de uma mentalidade apta a
conviver e ampliar esse novo conceito de
produção nos diversos segmentos da
agricultura.
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Sublinhamos que os espaços vividos
pelo campesinato o se organizam
exclusivamente como um espaço
geográfico de produção agrícola; são,
também, espaços onde os sujeitos
produzem e recriam fazeres e
conhecimentos próprios, tecidos e
reelaborados por gerações nas famílias.
Lugares onde os coletivos camponeses
instituem e consolidam suas identidades
culturais a partir da interação com a terra.
Essas relações se materializam pelo elo
entre sua principal atividade e o espaço de
sua identificação cultural.
Nesse sentido, se esses
multifacetados povos do campo, com sua
diversidade étnica e cultural, convivem
com suas lógicas e realidades próprias,
deve-se compreender a necessidade de
falarmos também de “Educações do
Campo”, porque estamos convencidos de
que as “Educações” destinadas a esses
coletivos precisam dialogar com suas
realidades, e que as atividades
desenvolvidas e o papel delas nas tessituras
dos conhecimentos devem possuir
aproximações com as atividades dessa
própria realidade. Observado o problema,
as ações educacionais da Escola família
Agrícola de Olivânia se concentraram na
busca de uma proposta de escola que
despertasse o campesinato, de forma
consciente e problematizadora, para essa
realidade educacional e as condições em
que vivia.
A criação da Escola Família Agrícola
de Olivânia veio acompanhada de uma
retomada da consciência, por parte das
famílias camponesas, da importância de
participarem de projetos de caráter
comunitário a partir do envolvimento com
as pessoas no processo de tomada de
decisão e na partilha dos benefícios
obtidos, aumentando, assim, a
responsabilidade individual e coletiva.
Desse modo, a Escola, ao longo de mais de
quatro décadas de fundação, tem deixado
de ser um espaço distante dos projetos das
famílias. Agora infunde a certeza de que o
diálogo será reforçado na medida em que
esteja aberta para a família e a família
consciente de seu papel colaborativo na
educação escolar de seus filhos.
Esta pesquisa representou momentos
em que foi possível conhecer parte de uma
história que precisa ser preservada e escrita
pelo que representa do pioneirismo das
famílias e lideranças camponesas e da
Escola Família Agrícola de Olivânia. Esses
protagonistas foram ousados porque, no
pleno rigor da repressão militar no Brasil,
eles se atreveram a acreditar em um projeto
de uma escola guiada pelo respeito aos
costumes e tradições camponesas por meio
de um diálogo permanente com a realidade
de sua inserção. Uma proposta de
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Educação Popular que caminhava no
sentido de revitalizar os espaços familiares
como espaços pedagógicos práticos de uma
aprendizagem contínua, específica e
estabelecida pelas mediações geracionais
nas famílias camponesas.
Observamos que as influências
mútuas geracionais sempre foram
momentos de preparo das condições
favoráveis para elaborar e reelaborar os
saberes próprios familiares e que
inevitavelmente não estão separados de
seus elementos constitutivos, de
interpretações e efetivações próprias.
Reproduzir e compartilhar esses saberes,
bem como desfazer invólucros que os
mantêm restritos ao seu local de concepção
têm sido a tônica da Pedagogia da
Alternância e da Escola Família Agrícola
de Olivânia que, pela geração de
movimentos de interseções, facilitam o
entendimento do “outro” e a aceitação dos
“contrários” de tal modo que o saber
prático, obtido com a família, quando da
execução das tarefas, e a teoria proveniente
da Escola, quando da troca de experiências
e absorção dos conteúdos ensinados, se
fundem para auxiliar no aprofundamento
da compreensão do que ocorre no dia a dia
nas famílias camponesas e na Escola
Família Agrícola de Olivânia.
A criação da Escola Família Agrícola
de Olivânia consistiu numa bem-sucedida
articulação entre as famílias camponesas
que procuravam ampliar os níveis de
escolarização de seus filhos e manter uma
prática educacional que os envolvessem,
nos processos educacionais, em contextos
específicos de suas realidades.
Percebemos a Escola Família
Agrícola de Olivânia como um espaço vivo
e em processo contínuo de uma construção
compartilhada para: expandir os espaços de
participação; consolidar a responsabilidade
das famílias camponesas; contribuir para o
fortalecimento dos saberes tecidos nas
relações familiares e em constante
ressignificação na sua ancestralidade;
desenvolver a agricultura familiar
camponesa; e consolidar-se como um
movimento contra-hegemônico às
imposições e aos interesses em transformar
a terra em espaços exclusivos de produção
mercantil.
Enfim, foi possível entender que,
para além das análises dos momentos
relacionais entre as famílias camponesas
do Vale e a Escola Família Agrícola de
Olivânia se arquitetam novos
relacionamentos e diferentes ações na
dinâmica de transformar o campo, nem
sempre envoltos com as particularidades
das lógicas do campesinato. Assim, diante
de alterações percebidas, a família
camponesa, ao mesmo tempo em que
parece ser contrária, mesmo que não se
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manifeste, busca outros percursos para se
reafirmar, cotidianamente, por meio de um
modo de vida próprio, de seu “ethos
camponês” e de uma cultura da
participação. Perpassa pela impulsão de
novos arranjos participativos e de incentivo
às famílias camponesas compartilhar das
decisões e se envolver em todos os
momentos da vida da Escola, não se
reduzindo a uma participação nas
atividades escolares. Essa participação
compreende as famílias camponesas
fazendo parte de um todo. Desse modo,
não unicamente uma educação no sentido
da formação técnica e transmissão de
conhecimentos, mas, sobretudo,
objetivando incorporar saberes e lógicas
formadas nas ancestralidades das famílias,
conferindo-lhes o protagonismo de todo o
processo de aprendizagem.
Considerando, então, os fatores
sociais, ambientais e econômicos do
mundo rural, articulados às necessidades
simbólico-educativas, identificamos os
aspectos que estão, ou não, permeando as
necessidades educativas dos coletivos
camponeses e que contribuem, ou não, na
formação de requisitos para ações de
participação da família camponesa no
espaço escolar. A compreensão dessas
dimensões familiares e educativas
contribuirá para uma reflexão no agir da
família camponesa nas etapas de parceria e
nos processos decisórios nos ambientes
socioeducativos da Escola Família
Agrícola de Olivânia.
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i
Passamos, a partir deste momento, adotar a
denominação de Vale para designar o Vale do Rio
Coryndiba.
ii
O cartão apresentava duas informações
equivocadas: a fazenda já era denominada de
“Jacarandá” e o início de sua ocupação aconteceu
em 1870.
iii
A denominação encontra-se na escritura pública
de doação feita por Dom Helvécio ao Estado do
Espírito Santo, em 11 de janeiro de 1938.
iv
Posteriormente as Escolas Famílias Rurais (EFRs)
recebem a denominação de Escolas Famílias
Agrícolas (EFAs).
v
A denominação “Escola da Família Rural de
Olivânia” foi utilizada até 1972. É uma tradução
literal da designação italiana “Scuola Famiglia
Rurale”. A partir desse ano, a Escola passa para a
denominação “Escola da Família Agrícola”, com a
criação do curso de 1
o
Grau. A partir de 1976,com a
autorização para funcionar o Curso
Profissionalizante de 2
o
Grau, a Escola adota a
denominação “Escola Técnica da Família Agrícola
de Olivânia”. Hoje é denominada “Escola Família
Agrícola de Olivânia”. Oferece o curso de ensino
fundamental de 5
a
a 8
a
série e o curso Médio
Profissionalizante com quatros anos de duração.
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Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 19/07/2019
Aprovado em: 14/10/2019
Publicado em: 19/12/2019
Received on July 19th, 2019
Accepted on October 14th, 2019
Published on December, 19th, 2019
Contribuições no artigo: Os autores foram os
responsáveis por todas as etapas e resultados da
pesquisa, a saber: elaboração, análise e interpretação dos
dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
Conflitos de interesse: Os autores declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Rogério Omar Caliari
http://orcid.org/0000-0003-4342-8392
Erineu Foerste
http://orcid.org/0000-0003-2846-0298
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Caliari, R. O., & Foerste, E. (2019). Escola Família
Agrícola de Olivânia: 50 anos de história narrada por
muitas vozes. Rev. Bras. Educ. Camp., 4, e7208. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e7208
ABNT
CALIARI, R. O.; FOERSTE, E. Escola Família Agrícola de
Olivânia: 50 anos de história narrada por muitas vozes.
Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 4, e7208,
2019. DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e7208