Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
THEMATIC DOSSIER / ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1184
Tocantinópolis
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n. 4
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Problematizando o trabalho invisível das mulheres e a
divisão sexual de trabalho no campo: uma parceria entre
educação popular e feminismo
Carla Negretto
1
,
Márcia Alves da Silva
2
1
Universidade Federal de Pelotas - UFPEL. Centro de Sociais Aplicadas e Humanas. Campus ICH ISP FAE. Rua
Coronel Alberto Rosa, 154. Centro. Pelotas - RS. Brasil.
2
Universidade Federal de Pelotas - UFPEL.
Autor para correspondência/Author for correspondence: ka_karllynha10@hotmail.com
RESUMO. Historicamente, as mulheres camponesas, assim
como as mulheres urbanas, sofrem com a desigualdade de
gênero. Desse modo, o sistema patriarcal que reforça a divisão
sexual do trabalho resume a vida de muitas mulheres, tanto à
dominação e exploração quanto à responsabilidade única pelos
afazeres domésticos e pelo cuidado com os filhos. Esse artigo
desenvolve algumas reflexões que se referem a uma experiência
investigativa que a autora vem desenvolvendo desde o ano de
2014 com mulheres assentadas da Reforma Agrária e que tem
como objetivo problematizar as relações de gênero e poder
ligadas à divisão sexual do trabalho entre homens e mulheres de
2 assentamentos da Reforma Agrária localizados no interior do
município de Pinheiro Machado/RS. Pretende-se explorar o
espaço social e as experiências de vida, dando voz as mulheres
sobre suas trajetórias de vida e trabalho, debatendo juntamente
com o público masculino aspectos da reprodução social que
divide atribuições, tarefas e lugares para homens e mulheres.
Para finalidade dessa proposta, essa pesquisa participativa atenta
para os métodos da Educação Popular e os estudos Feministas
que possibilitem momentos dinâmicos e modificáveis dirigidos
para uma transformação social.
Palavras-chave: Relações de Gênero, Mulheres, Trabalho,
Educação Popular, Feminismo.
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Problem the invisible work of women and the sexual
division of work in the field: a partnership between
popular education and feminism
ABSTRACT. Historically, peasant women, as well as urban
women, suffer from gender inequality. Thus the patriarchal
system that reinforces the sexual division of labor sums up the
lives of many women, both domination and exploitation, and the
sole responsibility for household chores and childcare. This
article develops some reflections that refer to an investigative
experience that the author has been developing since the year
2014 with women based on Agrarian Reform and whose
objective is to problematize gender and power relations related
to the sexual division of labor between men and women of 2
settlements of Agrarian Reform located in the interior of the
municipality of Pinheiro Machado/RS. It is intended to explore
social space and life experiences, giving women voice on their
life and work trajectories, discussing with the male public
aspects of social reproduction that divides assignments, tasks
and places for men and women. For the purpose of this proposal,
this participatory research attentive to the methods of Popular
Education and Feminist studies that allow dynamic and
modifiable moments directed towards a social transformation.
Keywords: Gender, Women, Labor, Popular Education,
Feminism.
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Problematizando el trabajo invisible de las mujeres y la
división sexual de trabajo en el campo: una asociación
entre educación popular y feminismo
RESUMEN. Históricamente, las mujeres campesinas, así como
las mujeres urbanas, sufren con la desigualdad de género. De
este modo, el sistema patriarcal que refuerza la división sexual
del trabajo resume la vida de muchas mujeres, tanto a la
dominación y explotación como a la responsabilidad única por
los quehaceres domésticos y por el cuidado con los hijos. Este
artículo desarrolla algunas reflexiones que se refieren a una
experiencia investigativa que la autora viene desarrollando
desde el año 2014 con mujeres asentadas de la Reforma Agraria
y que tiene como objetivo problematizar las relaciones de
género y poder ligadas a la división sexual del trabajo entre
hombres y mujeres de 2 asentamientos de la Reforma Agraria
ubicados en el interior del municipio de Pinheiro Machado / RS.
Se pretende explorar el espacio social y las experiencias de vida,
dando voz a las mujeres sobre sus trayectorias de vida y trabajo,
debatiendo junto con el público masculino aspectos de la
reproducción social que divide atribuciones, tareas y lugares
para hombres y mujeres. Para fines de esta propuesta, esa
investigación participativa atenta para los métodos de la
Educación Popular y los estudios Feministas que posibiliten
momentos dinámicos y modificables dirigidos hacia una
transformación social.
Palabras clave: Relaciones de Género, Mujeres, Trabajo,
Educación Popular, Feminismo.
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Introdução
Este trabalho apresenta e
problematiza as relações de gênero ligadas
a divisão sexual do trabalho entre homens
e mulheres dos assentamentos Alegrias e
Santa Inácia, localizados na zona rural do
município de Pinheiro Machado/RS. Para
atender as finalidades dessa proposta, a
pesquisa vem aproximando a metodologia
da educação popular com os estudos da
teoria feminista, numa práxis que segundo
Paulo Freire, possibilite a relação entre
humanização e educação, valorizando os
saberes e a realidade do povo para
construção de novos saberes com
metodologias incentivadoras a participação
e ao empoderamento desses sujeitos(as),
permeado por um processo de construção
de conhecimento pedagógico e político,
estimulador de transformação social,
liberdade e felicidade.
É importante salientar que a pesquisa
também agrega dados coletados de um
Projeto de Extensão da Universidade
Federal de Pelotas, denominado “Trabalho
Artesanal com Mulheres do Movimento de
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)”,
do qual a pesquisadora fez parte como
bolsista ministrante e membro da comissão
organizadora, desenvolvendo atividades
ligadas a confecção artesanal, gênero e
educação nos anos de 2014 a 2016 com 4
grupos de mulheres pertencentes aos
assentamentos: Alegrias, Campo Bonito,
Pinheiro Machado e Santa Inácia, todos
localizados no município de Pinheiro
Machado/RS. Os dados coletados durante
o período, estão sendo analisados buscando
não apenas descrever, como ocorre a
divisão sexual do trabalho no campo, mas
também indagando respostas num
empenho coletivo com os participantes
(homens e mulheres) para interromper os
processos históricos do sistema patriarcal.
Com base no diálogo entre Educação
Popular e os estudos feministas, a pesquisa
reflexiona questões pertinentes sobre o
papel da mulher na sociedade, fazendo um
resgate histórico com esses sujeitos sobre a
participação feminina no desenvolvimento
dos processos de produção e reprodução da
força de trabalho, marcado pela exclusão e
pela inviabilização. Promover a reflexão
sobre esses aspectos, é parte dessa proposta
metodológica, que busca trabalhar a
consciência de que é preciso mudar as
relações que qualificam e redimensionam a
tripla jornada de trabalho feminino no
campo, inteirando esse paradigma cultural
como um componente das relações sociais
no modelo capitalista patriarcal.
Metodologia
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Discutir questões sobre gênero,
trabalho e empoderamento feminino no
meio rural, exige que a pesquisa utilize
uma metodologia participativa que
possibilite um trabalho popular de
dimensão pedagógica e política, dirigido à
transformação social. Para atender o
objetivo proposto dessa pesquisa-ação, de
problematizar as relações de gênero e
poder ligadas a divisão sexual do trabalho
entre homens e mulheres assentados da
reforma agrária do município de Pinheiro
Machado/RS, materializamos esse
processo partindo da realidade concreta
dos participantes, compreendendo as
especificidades da realidade local em suas
diferentes dimensões e interações. A coleta
de dados sobre a realidade de vida e
trabalho no cotidiano rural, contempla
observação participante, rodas de
conversa”, anotações em um diário de
campo, oficinas artesanais e fotografias.
Estas ferramentas metodológicas tem um
fundamento pedagógico e político que
possibilita um pensar dialógico e critico a
respeito da realidade social.
A proposta dos encontros dialógicos,
por meio das rodas de conversa, realizado
antes da confecção artesanal como
demonstra a figura abaixo, nos oferece a
oportunidade de discutir as atribuições dos
distintos papéis delegados as diferentes
categorias de sexo. Esses papéis foram
construídos sobre o mito da superioridade
masculina, criando assim uma estrutura
que domina, reprime e subordina a mulher.
Problematizar e refletir coletivamente com
esses sujeitos como foram construídas as
relações de gênero, nos abre possibilidades
para questionar as relações de poder e
indagar respostas sobre “a quem serve a
relação de dominação da mulher pelo
homem” (Saffioti, 1987, p. 21).
Figura 1 - Encontro dialógicos (rodas de conversa) realizado com homens e mulheres do Assentamento Alegrias,
município de Pinheiro Machado/ RS.
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Fonte: Projeto “Trabalho Artesanal com Mulheres do movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, jan.,
2016.
Nessa construção dialógica, levamos
em conta a pertinência dos relatos trazidos
pelos participantes (homens e mulheres)
sobre as atribuições de distintos papéis
delegado às diferentes categorias de sexo.
É o diálogo sobre esse cotidiano que
desmascara a naturalização de papéis
sociais e muda o conceito sobre a divisão
sexual do trabalho e a compreensão do que
é opressão. Essa forma dialógica de
educar, com base na realidade das pessoas
participantes, com elas e não para elas,
Visa à libertação do ser humano, ao
atuar contra os efeitos de uma
psicologia da opressão, por meio de
um processo de conscientização de
sujeitos ativos - isto é, políticos -,
portanto, capazes de se organizar e
transformar, eticamente, a história
que está sendo construída
permanentemente por seres humanos
(Vieira, 2012, p. 163).
Figura 2 - Grupo de mulheres e homens nas ‘rodas de conversa’ realizando um diálogo sobre o cotidiano rural.
Assentamento Alegrias, Pinheiro Machado/RS.
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Fonte: Acervo de Pesquisa, out., 2017.
A função social que é delegada à
mulher camponesa, na reprodução e
perpetuação dos papéis sócio-familiares
historicamente constituídos, na maioria das
vezes as afasta das decisões importantes
dentro da propriedade e comunidade. Ao
tentarem transpor essas barreiras,
enfrentam ainda mais dificuldade, é o que
relata uma das participantes: “Há dias que
meu pai não deixa de jeito nenhum minha
mãe vir comigo para as oficinas, ele diz
que ela tem que ajudá-lo na lavoura e
ponto final. Se eu ficar esperando demais
por ela, acabo eu não participando”
(Assentada A, 2016). Ao analisarmos esses
depoimentos, observamos nitidamente o
sistema patriarcal se fazendo vigente. São
esses alaridos, trazidos para dentro das
rodas de conversa que a pesquisa busca
analisar e consequentemente trabalhar para
romper com esse sistema hierárquico que
domina a vida de muitas mulheres. É nesse
contexto que a educação popular feminista
entra em ação, transmutando os relatos da
vida cotidiana, apresentadas nas rodas de
conversa, em pautas de luta feminista pelo
direito da equidade entre os neros,
direito a ter voz nos espaços de decisão,
direito à participação econômica nos lucros
e direito à felicidade plena.
A proposta das oficinas artesanais
como revela a imagem abaixo, compreende
uma segunda atribuição significativa para a
investigação. Elas são usadas como
ferramenta metodológica para reintegração
do grupo dando suporte para a valorização
dos saberes, do trabalho e da luta feminina.
É nas relações intrínsecas das rodas de
conversa, nas texturas, entre as sucatas, os
tecidos e as agulhas que mais relatos sobre
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a ‘vida vivida’ são trazidos à tona com
forte significado pessoal. Através dessa
memória rememorada,
entrelaçamos passado, presente e
futuro, pois é olhando o passado que
conseguimos compreender as
cicatrizes da opressão, medo e
silêncio que a vida feminina é levada
no paradigma sociocultural a
vivenciar. É através da vida vivida
que cada mulher reinterpreta os fatos
do outrora no presente, dando-lhes
novos significados se assim julgar
oportuno (Negretto & Silva, 2017, p.
2216-2217).
Figura 3 - Oficina artesanal com o grupo de mulheres do Assentamento Santa Inácia, município de Pinheiro
Machado/RS.
Fonte: do projeto, maio de 2015.
Esta abordagem metodológica, nos
têm permitido interpretar as fases da vida
do homem e da mulher rural. Suas
experiências experimentadas de forma
individual ou coletiva, nos trazem
possibilidades concretas para compreender
como ocorrem as relações de gênero e a
divisão sexual do trabalho dentro e fora
dos assentamento. A intenção política -
pedagógica aqui, é fazer com que os
sujeitos se percebam, autores de suas
próprias vidas, explicitando em parceria
com os estudos feminista toda a
acumulação primitiva que domesticou
mulheres e homens e redefiniu o conceito
de feminilidade e masculinidade.
Problematizar as trajetórias de vida e
trabalho abre possibilidades para
construção de novos horizontes e
questionamentos críticos sobre os papéis
sociais atribuídos aos sexos. A organização
de encontros e oficinas artesanais se
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concretizam em ferramentas
possibilitadoras de libertação, visto que, é
por meio desses espaços que muitas
mulheres tem a oportunidade de se
desprender das regras de conduta social,
podendo construir uma nova identidade
pessoal.
Ao ser induzida como influente
ferramenta metodológica para a abordagem
do universo feminino, as oficinas
artesanais se materializam em espaços de
construção coletiva e trocas de
experiências de vida, onde o saber/fazer
artesanato é reconhecido como trabalho
feminino e não como algo 'menor', isso
porque, para muitas participantes, ele
assegura geração de renda.
Grande parte das oficinas, são
realizadas nas sedes dos assentamentos.
Quando não é possível dispor desses
ambientes, ocupamos os espaços
disponíveis nas residências das
participantes, ou organizamos oficinas
artesanais ao ar livre. As matérias-primas
utilizadas para confecção artesanal,
derivam de materiais naturais e
industrializados. Os elementos naturais
originam-se do próprio ambiente de
vivência e trabalho das participantes.
Podemos destacar aqui, as diferentes
qualidades de sementes, galhos de árvores,
palha de milho, cascas de ovos, pedras e
musgos. Os demais materiais utilizados,
provém de objetos industrializados
adquiridos por meio de compras pessoais
ou doações de terceiros. Podendo citar
como exemplo, as caixas de papelão,
garrafas Pet, jornal, retalhos de tecido entre
outros. Como resultado da união desses
materiais podemos destacar uma rica
produção artesanal de cestaria em jornal,
cerâmica fria, decoupagem, serigrafia,
pinturas em MDF, chaveiros em tecidos,
tapeçaria com malha entre outros como
destacam as fotografias abaixo.
Figura 4 - Produção de bonecas confeccionadas com retalhos de tecido e palha de milho. Assentamento Pinheiro
Machado, município de Pinheiro Machado/RS.
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Fonte: do projeto, jul., 2015.
Figura 5 - Artesanatos produzidos durante as oficinas do projeto. Caixas de MDF, decoradas com mosaicos de
cascas de ovos.
Fonte: Projeto de extensão Trabalho Artesanal com Mulheres do Movimento dos Trabalhadores rurais sem Terra
(MST).
Os produtos confeccionados
geralmente são vendidos na feira da
Reforma Agrária que acontece duas vezes
por mês no centro da cidade de Pinheiro
Machado/RS. O incentivo à produção
artesanal se constitui como uma forma
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alternativa de incentivo às economias de
base local, assegurando a preservação da
cultura regional, bem como a geração de
renda para inúmeras famílias, considerando
que grande parte das mulheres encontra no
artesanato uma segunda condição de
garantir a manutenção do bem-estar de
seus familiares (Lemos, 2011).
Figura 6 - Feira da Reforma Agrária, município de Pinheiro Machado/RS.
Fonte: da pesquisa, ago., 2017.
O estimulo à produção artesanal
influi diferentes extensões da vida da
mulher camponesa, desenvolvendo a
criatividade, a coordenação motora,
auxiliando no controle da ansiedade,
aumentando o poder de concentração, além
de fornecer a imensa satisfação em cada
mulher de se verem capazes de produzir
peças lindas com as próprias mãos. Esses
momentos coletivos possibilitam trocas de
experiências e fortalecem cada participante
enquanto mulher e enquanto grupo.
De acordo com as observações e
registro dos relatos coletados, a
socialização e amizade vinham se
extinguindo entre elas em decorrência dos
afazeres domésticos que, por vezes,
sucumbe horas do dia, tornando-se um
trabalho repetitivo e fastidioso, não
remanescendo tempo para empenhar-se em
incumbências contrárias. O incentivo à
participação nos encontros reaproximou
essas mulheres, auxiliando-as para um
novo e melhor convívio social, se
configurando, similarmente, no
fortalecimento da autoestima,
desenvolvimento da cidadania e estimulo
da emancipação feminina pelo direito de
instruírem-se e serem protagonistas de sua
própria história.
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Figura 7 - Grupo de mulheres do Assentamento Santa Inácia em um momento de socialização e amizade.
Fonte: Acervo do Projeto, 2015.
Resultados e discussão: A
problematização do trabalho feminino
Pesquisar questões de gênero no
meio rural, sobretudo no contexto do
cotidiano da mulher da reforma agrária,
nos possibilita conhecer a realidade dos
assentamentos não unicamente sob
enfoque socioeconômico, mas também nas
relações sociais estabelecidas do dia a dia
que, além de dividirem tarefas e lugares
sexualmente desiguais, acarretam em
desvalorização, exploração, servidão,
reclusão, e silenciamento feminino.
Na divisão sexual do trabalho no
campo, cabe a elas (99% das mulheres) a
produção de alimentos para o consumo da
família, através de pomares e a reprodução
de pequenos animais. De acordo com
Korol (2016) “As mulheres da América
Latina são responsáveis por 90% da
produção de alimentos da agricultura
familiar e tem participação ativa nas
atividades relacionadas ao processamento,
preservação e comercialização desses
produtos”. Porém, a jornada de trabalho da
mulher rural é subestimada pelo fato do
seu trabalho agrícola ser considerado uma
extensão do trabalho doméstico (p. 96).
Conforme as observações de campo,
as atividades desempenhadas por muitas
mulheres camponesas, são em sua grande
maioria, tríplices em relação às atividades
realizadas pelos homens. São elas, que
primeiramente despertam no alvorecer do
dia, ordenham as vacas, aprontam o
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desjejum, desadormecem e preparam as
crianças para a escola e executam
rapidamente o serviço doméstico antes de
destinar-se ao companheiro nas atividades
do lote. Na metade do dia, é ela que,
mesmo cansada da lavragem, prepara o
almoço e se encarrega das demais
atividades domésticas que ficaram para
trás. No intervalo da tarde, reassume as
atividades do lote, regressando para casa
somente no final do dia para efetuar as
mesmas tarefas de ordem reprodutivas
relacionadas ao cuidado da casa e dos
filhos.
Os dados coletados pela pesquisa,
mostram que do ano de 2014 até 2016,
90% das 40 mulheres camponesas
declaram não se identificarem como
trabalhadoras, sobretudo porque realizam
tarefas secundárias em relação aos
produtos economicamente mais
importantes para a conformação da renda
familiar. Ainda que seu trabalho cotidiano
inclua a elaboração de produtos que são
vendidos nas feiras e geram receitas para a
propriedade, seja não transformados, como
ovos, pequenos animais ou verduras; seja
artesanais, ou panificados como pães,
doces e conservas, raramente elas
consideravam essas tarefas como trabalho
remunerado. Isso porque, no processo da
construção do modelo patriarcal, a mulher
quando expulsa do universo econômico
que cria o produto excedente, cumpriu uma
função econômica fundamental. A de
restaurar a força de trabalho que move a
economia, ficando desse modo,
marginalizada da esfera pública e
escondida atrás da fachada da família
monogâmica até os dias atuais. Para Hirata
e Kergoat (2007), esse trabalho além de ser
invisível, é realizado de forma gratuita
pelas mulheres “não para elas mesmas,
mas para outros, e sempre em nome da
natureza, do amor e do dever materno” (p.
597).
A ideia de que o trabalho masculino
é mais prestigiado que o feminino é outro
fator a ser questionado. Esse conceito é tão
reproduzido que leva até as próprias
mulheres acreditarem que são incapazes de
ser reconhecidas e valorizadas por algo que
venham a fazer. Essa forma particular de
pensar a divisão social do trabalho é
problematizado por Hirata & Kergoat
(2007) em, “dois princípios organizadores:
o princípio de separação (existem trabalhos
de homens e trabalhos de mulheres) e o
princípio hierárquico (um trabalho de
homem “vale” mais que um trabalho de
mulher” (p. 599). Uma das principais
justificativas para essa ideologia é o
processo da naturalização da desigualdade,
que rebaixa o sexo biológico e o reduz as
construções e as práticas sociais.
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Pelo menos 30% das mulheres
pesquisadas, denunciaram à ideologia de
naturalização de ‘papéis sociais’ sexuados
e desiguais. Essas, tem que lidar
diariamente com a exclusão da vida
pública e desvalorização do seu trabalho,
seja ele executado no meio rural, na esfera
domiciliar, no cuidado dos filhos ou na
“ajuda” prestada ao marido, de modo que
não significa uma simples tarefa realizada
esporadicamente; essa ajuda significa que
muitas trabalham lado a lado, diretamente
com o companheiro na lavoura
desempenhando as mesmas funções, porém
não são reconhecidas pelo trabalho
realizado, não participam das decisões
sobre os rendimentos do produto final e
não recebem retorno igualitário na
execução das tarefas de ordem doméstica.
Essa desigualdade de direitos e deveres,
não apenas as decepciona mas também
afeta sua qualidade de vida, que muitas
se queixam regularmente de dores
musculares em razão do excesso de
trabalho.
Para a pequena parcela de mulheres
que consegue tomar consciência da
servidão desvalorização e exploração da
força de trabalho à que estão submetidas,
existe à denúncia de que a maternidade cria
condições que impedem a participação
feminina na vida pública. Segundo Saffioti
(1987), o desprestigio feminino na vida
pública, a desvalorização e a exploração do
trabalho feminino “decorre de sua
capacidade de ser mãe”, isto é, “a
sociedade tenta fazer crer que é natural que
a mulher se dedique aos afazeres
domésticos, compreendida a
socialização dos filhos, como é natural sua
capacidade de dar à luz (p. 09). Essa
construção é delimitada com bastante
precisão segundo o modelo de organização
social vigente, e pode ser comprovado de
acordo com os relatos das participantes:
em casa, sempre me ensinaram
que serviço doméstico era coisa da
mulher fazer (Assentada C, 2013).
Eu sempre como comida fria. Todo
mundo senta à mesa e ergue o prato
pra cima pra mim servir um por um,
cortar a carne a salada, servir o suco.
Quando me sento, a comida já esfriou
e todos terminaram de comer. Fico
sozinha na mesa (Assentada C,
2015).
Meu marido diz que serviço
doméstico é coisa de mulherzinha,
por isso não posso nem pensar em
ensinar meus filhos a cozinhar,
quanto mais a lavar a louça, fazer
algum serviço na casa (Assentada C,
2016).
Para Silvia Federici (2017), essa
depreciação do trabalho realizado pelas
mulheres, se inicia com o processo de
privatização da terra na Europa e nas
Américas e a chegada das relações
monetárias em meados do século XVII.
Nesse novo período que se iniciou, as
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mulheres encontraram maiores
“dificuldades do que os homens para se
sustentar, tendo sido confinadas ao
trabalho reprodutivo no exato momento em
que este trabalho estava sendo
absolutamente desvalorizado” (p. 145). Se
para “classe alta era a propriedade que
dava ao marido poder sobre sua esposa e
filhos, nas classes baixas a exclusão das
mulheres do recebimento de salário dava
aos trabalhadores um poder semelhante,
entendido como o patriarcado do salário”
(p. 194).
Para a realidade da mulher
camponesa, as consequências históricas do
modelo social patriarcal tem um peso ainda
maior, isso porque, se pararmos para olhar,
o homem camponês não trabalha na
indústria, portanto ele não depende de um
salário mínimo para sobreviver. É a mulher
que lado a lado, trabalha com ele na
lavoura garantindo a subsistência familiar.
Cabe perguntar, por que então, se destaca
na organização da família camponesa um
falso patriarcado do salário? Por que cabe
às mulheres a função de “ajudantes” e não
o mesmo título que eles de ‘trabalhadoras
rurais’.
Na perspectiva de Federici (2017), há
uma resposta para essa construção de
inferioridade e subordinação da mulher ao
homem, “Na medida em que o corpo
feminino foi apropriado pelo estado e pelos
homens, foi também forçado a funcionar
como um meio para reprodução e
acumulação de trabalho” (p. 34). A
desigualdade social e de gênero é resultado
de uma sociedade de lutas de classes
historicamente construída.
Diante desse contexto, algumas
reflexões se fazem latentes a respeito da
participação e da representação dos papéis
sociais interpretados pelo homem e pela
mulher rural nos espaços de decisão, na
divisão sexual do trabalho e nas
implicações que rebatem na temática de
gênero. O engajamento coletivo com
pautas centralizadas e objetivas que
busquem superar a disparidade entre os
sexos, possibilitará o enfrentamento da
opressão e da desigualdade. A participação
e a voz das mulheres nos espaços de
decisão e formação, encontra-se como uma
perspectiva de firmamento para a
transformação de uma nova realidade
social.
A organização de espaços de
formação, tendo o respaldo no pensamento
social e filosófico dos estudos feministas e
na Educação Popular vem auxiliando a luta
das mulheres camponesas em todas as suas
ações, de vida e trabalho. Problematizar a
luta das mulheres camponesas pelo viés da
educação popular pode ser definida como
uma forma de educar transformadora, que
liberta o ser humano, atuando contra os
Negretto, C., & Silva, M. A. (2018). Problematizando o trabalho invisível das mulheres e a divisão sexual de trabalho no campo:
uma parceria entre educação popular e feminismo...
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efeitos de uma psicologia da opressão,
contribuindo para a humanização de uma
sociedade menos injusta, menos iníqua,
menos castradora.
Considerações finais
A partir desta pesquisa, pode-se
concluir que as mulheres ligadas aos
quatro assentamentos buscam, através de
suas ações organizativas e na prática
cotidiana, é conquistar espaços que lhes foi
historicamente retirado e serem
reconhecidas pelo trabalho realizado,
conforme relata uma assentada: “Queria
ser mais valorizada como esposa, como
artesã e agricultora. Queria que me
respeitassem mais” (Assentada M, 2016).
A luta pela igualdade nas relações sociais
de trabalho, apresenta-se como um
processo de melhoramento das relações de
gênero e de evolução na história. No
contexto histórico, a produção capitalista
deslocou a mulher de seu espaço, como se
ela fosse um mero objeto de reprodução e
restringiu seu trabalho à esfera doméstica.
Problematizar a luta feminista pelo viés da
educação popular, tendo nos relatos das
histórias de vida um fio condutor para
compreender a realidade social, pode ser
definido como uma forma transformadora
de educar. Se há desejo de desconstruir os
processos de desigualdade e injustiça é
necessário superar os modelos sociais
antigos e encarar um novo papel social: o
de restaurador da humanidade dentro da
sociedade. O enfrentamento da opressão,
do anonimato político, social e econômico
diz respeito a todas as mulheres e homens
que querem torna-se sujeitos de direito a
partir de um direito que se comporte de
modo diferente do que está imposto. A
importância do estudo e da pesquisa sobre
as temáticas das relações de gênero em
espaços informais, atende a perspectiva de
uma educação voltada para as classes
populares. E pode ser definida como uma
educação transformadora, que liberta o ser
humano, atuando contra os efeitos de uma
psicologia da opressão, contribuindo para
humanização de uma sociedade menos
injusta, menos iníqua e menos castradora.
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Figura 8 - Grupo de mulheres, assentamento Pinheiro Machado, município de Pinheiro Machado/RS.
Fonte: do projeto, out., 2014.
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Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 31/05/2018
Aprovado em: 10/07/2018
Publicado em: 23/12/2018
Received on May 31th, 2018
Accepted on July 10th, 2018
Published on December 23th, 2018
Contribuições no artigo: As autoras foram responsáveis
pela elaboração, análise e interpretação dos dados;
escrita e revisão do conteúdo do artigo, e aprovação
da versão final publicada.
Author Contributions: The authors were responsible for
the designing, delineating, analyzing and interpreting the
data, production of the manuscript, critical revision of the
content and approval of the final version published.
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Conflitos de interesse: As autoras declararam não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Carla Negretto
http://orcid.org/0000-0002-1950-2452
Márcia Alves da Silva
http://orcid.org/0000-0002-4727-2623
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Negretto, C., & Silva, M. A. (2018). Problematizando o
trabalho invisível das mulheres e a divisão sexual de
trabalho no campo: uma parceria entre educação popular
e feminismo. Rev. Bras. Educ. Camp., 3(4), 1184-1201.
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2018v3n4p1184
ABNT
NEGRETTO, C.; SILVA, M. A. Problematizando o trabalho
invisível das mulheres e a divisão sexual de trabalho no
campo: uma parceria entre educação popular e feminismo.
Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 3, n. 4,
set./dez., p. 1184-1201, 2018. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n4p1184