Revista Brasileira de Educação do Campo
The Brazilian Scientific Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n3p970
Tocantinópolis
v. 3
n. 3
p. 970-990
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Interfaces entre a Educação do Campo e o êxodo rural da
juventude camponesa
Marizete Andrade da Silva
1
1
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Programa de Pós Graduação em Educação/Faculdade de Educação. Avenida
Presidente Antônio Carlos 6627, Pampulha. Belo Horizonte - MG. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: marizethandrade@hotmail.com
RESUMO. Durante as últimas décadas o campo vem perdendo
expressivamente seu contingente populacional e, entre a juventude,
essa desintegração torna-se mais agravante, pois compromete a
implantação de um projeto socialmente justo para o campesinato
brasileiro. Neste sentido, o presente estudo objetiva refletir sobre os
valores e princípios da Educação do Campo frente ao desafio do
êxodo da juventude camponesa. Ressaltamos que não podemos
atribuir a responsabilidade de superação desta problemática às
experiências educativas que se desenvolvem no campesinato, ainda
que emancipadoras. Partimos do pressuposto de que a Educação do
Campo contribuirá para restringir este fluxo migratório através dos
valores e princípios que defendem e cuja materialização ocorre através
de práticas educativas. Resultante de pesquisa bibliográfica apoiada
em estudos de Abramovay et al. (1998), Caldart (2015, 2004, 2002),
Molina (2015), Galindo (2014) entre outros, a investigação indicou
que o fenômeno do êxodo rural da juventude camponesa provém de
inúmeros fatores, em que sobressai a ausência de políticas públicas
abrangentes. Considerou-se, também, a imprescindível inclusão da
diversidade e extensão do campesinato nas políticas educacionais,
ressaltando a realidade objetiva das populações que criam e recriam
este espaço como modo de vida.
Palavras-chave: Educação do Campo, Práticas Educativas, Êxodo
Rural, Juventude Camponesa, Políticas Públicas.
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Interfaces between Countryside Education and the rural
youth peasant exodus
ABSTRACT. During the past few decades, the countryside has
significantly lost its population and, among youth, this disintegration
has become even worse because it compromises the implantation of a
socially fair project to Brazilian peasantry. In this sense, this study
aims at reflecting about the values and principles of Countryside
Education faced with young peasants' exodus. We highlight that we
cannot deem educational experience that is developed among peasants
responsible for solving this issue, even if these experiences are
liberating. We depart from the assumption that Countryside
Education will contribute to restricting this migration flow through the
values and principles it defends and whose realization takes place
through educational practice. Resulting from bibliographical research
based on studies by Abramovay et al. (1998), Caldart (2015, 2004,
2002), Molina (2015), Galindo (2014), among others, this
investigation shows that the phenomenon of rural youth peasant
exodus derives from a number of factors, among which the lack of
comprehensive public policies. We consider indispensible to broaden
educational policies to the diversity and extension of peasantry,
highlighting the objective reality of populations who create and
recreate this space as a way of life.
Keywords: Countryside Education, Educational Practice, Rural
Exodus, Peasant Youth, Public Policies.
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Interfaces entre Educación del Campo y el éxodo rural de
la juventud campesina
RESUMEN. Durante las últimas décadas el campo viene perdiendo
expresivamente su contingente poblacional y, entre la juventud esa
desintegración es más agravante, pues compromete la implementación
de un proyecto socialmente justo para el campesinado brasileño. En
este sentido, el presente estudio objetiva reflexionar sobre los valores
y principios de la Educación del Campo frente al desafío del éxodo de
la juventud campesina. Resaltamos que no podemos atribuir la
responsabilidad de superación de esta problemática a las experiencias
educativas desarrolladas en el campesinado, aunque emancipadoras.
Partimos del supuesto de que la Educación del Campo contribuirá para
restringir este flujo migratorio a través de los valores y principios que
defienden y cuya materialización ocurre por las prácticas educativas.
Resultante de la pesquisa bibliográfica apoyada en estudios de
Abramovay et al. (1998), Caldart (2015, 2004, 2002), Molina (2015),
Galindo (2014), entre otros, la investigación indicó que el fenómeno
del éxodo rural de la juventud campesina proviene de innúmeros
factores, destacando la ausencia de políticas blicas más amplias.
Consideró, también, la imprescindible cobertura de las políticas
educacionales a la diversidad y extensión del campesinado, resaltando
la realidad objetiva de las poblaciones que crean e recrean este espacio
como modo de vida.
Palabras clave: Educación del Campo, Prácticas Educativas, Éxodo
Rural, Juventud Campesina, Políticas Públicas.
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Introdução
A Educação do Campo no Brasil
surgiu no século XX, através de lutas
populares forjadas expressivamente pelos
movimentos camponeses organizados,
tendo como finalidade garantir que
trabalhadores e trabalhadoras do campo
tenham o direito de educar-se conforme
suas especificidades culturais e sua
identidade. Ressalta-se que a demanda por
um projeto educativo peculiar para o
campo brasileiro, historicamente, esteve
presente nas pautas reivindicatórias dos
sujeitos campesinos. Contudo, somente no
final dos anos 1990 produziu sua maior
reação como consequência de uma
formação política mais substancial e
engajada dos movimentos sociais
camponeses, que exigia a Educação do
Campo como dever do Estado,
principalmente a partir de políticas
públicas mais abrangentes.
O conceito de Educação do Campo
foi construído no interior das contestações
dos movimentos sociais do campo, “nas
lutas contra hegemônicas dos sujeitos que
buscam diferenciar seu projeto educativo
daquele da histórica educação rural.”
(Oliveira, 2015, p. 46). Portanto, não é
escolarização que a concepção abarca, ela
contempla também uma troca de saberes
que permite uma transformação da
realidade, segundo o entendimento
ontológico dos homens, tendo em vista
melhores condições de vida para o
coletivo. O sentido da educação do
campesinato faz referência a uma maneira
de viver, que é próprio daqueles que
buscam manter uma relação com a
natureza equilibrada, e, cuja apropriação da
mesma ocorre mediatizadas pelo trabalho.
Os camponeses constituem sujeitos,
que tendo acesso a terra e aos recursos
naturais que esta suporta, solucionam seus
problemas reprodutivos a partir da
produção rural desenvolvida, de tal modo,
que não se distingue o universo dos que
decidem sobre a alocação do trabalho dos
que sobrevivem com o resultado desta
alocação. No decorrer de suas vidas, e, nas
interações sociais estabelecidas, esses
sujeitos desenvolvem hábitos de trabalho e
consumo e distintas formas de apropriação
da natureza que lhes caracteriza
peculiaridades no jeito de viver e ser no
complexo âmbito das sociedades
capitalistas contemporâneas (Costa, 2004).
Deste modo, é conveniente pensar que, na
proposta educativa dos atores que
apresentam a Educação do Campo destaca
as relações de trabalho, sua produção de
cultura e a plena diversidade territorial e
histórica.
A posterior implementação de
políticas públicas como o Programa
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Nacional da Reforma Agrária
(PRONERA)
i
, Programa de Apoio à
Formação Superior de Licenciatura em
Educação do Campo (PROCAMPO)
ii
e o
Programa Nacional de Educação do
Campo (PRONACAMPO)
iii
, representou
um importante avanço na expansão de
experiências educativas do campo.
Permitiu, ainda, que estas fossem
articuladas, reforçando o entendimento
que, embora negligenciados pelo Estado, o
protagonismo dos trabalhadores e
trabalhadoras do campo desencadeou ações
que se afirmavam contrapondo o
determinismo da história. Mesmo que
legitimem a força da presença
governamental nas iniciativas populares e,
em determinadas circunstâncias
enfraqueçam a autonomia dos movimentos
sociais e seus parceiros, como as
universidades públicas, estas políticas
estabeleceram uma outra dimensão para
entender a Educação do Campo, o que a
possibilitou ser discutida e reconhecida
através de documentos oficiais do Estado.
Ao apresentar-se como um dos eixos
que sustentam um desenvolvimento
incompatível com a lógica de reprodução
capitalista, a Educação do Campo
confronta inúmeras problemáticas, como a
diminuição do número de escolas do
campo, pouca oferta de ensino em todos os
níveis educacionais, especialmente
superior e a qualificação e ampliação do
orçamento dos seus programas. Tais
desafios são elementos constitutivos da
marginalização de vida dos (as)
camponeses (as), ou ainda, representam os
resultados desta precarização que vão se
metamorfoseando e tornando-se versões
contemporâneas de práticas opressoras
arcaicas. A notória preponderância dos
latifúndios produtivos nas políticas
governamentais em prejuízo da agricultura
camponesa exemplifica uma das
atualizações do que de mais antigo em
termos de padrão de poder agrário no
Brasil.
Dentre os rios enfrentamentos que
a Educação do Campo vem contrapondo
nos últimos tempos, resultado desta
racionalidade desenvolvimentista projetada
para o campo, o êxodo da juventude
camponesa representa, especialmente, uma
questão muito complexa que não se insere
somente no âmbito da restrição de se
efetivar a educação camponesa.
Impossibilita, para o campesinato, a
execução de um projeto de
desenvolvimento cuja implementação
caracteriza-se em ressaltar a identidade
camponesa, ao contrário do que se exige o
projeto modernizador de toda a sociedade
que somente se afirma deformando e
homogeneizando os valores culturais.
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Segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE, 2010), que
considerou para coleta de dados às
legislações de cada município para
subdividir o espaço territorial brasileiro em
áreas urbanas e rurais, ou seja, são
definidas como rurais áreas externas aos
perímetros urbanos de cidades ou vilas, 2
milhões de pessoas deixaram o meio rural
entre os anos de 2000 a 2010, sendo que 1
milhão desta população que emigra é
considerada jovem. Sob vários aspectos
esta saída em massa pode ser desastrosa
para o futuro do campesinato que os
movimentos sociais idealizam, incluindo,
até mesmo, o comprometimento do
fortalecimento dessas organizações sociais.
Diante deste contexto, o presente
estudo aborda como as práticas educativas
do espaço campesino podem influenciar a
interrupção da saída da juventude do
campo para a cidade em um processo
migratório. Trata-se de uma pesquisa
qualitativa desenvolvida através de estudos
bibliográficos que descrevem a
materialidade da Educação do Campo a
partir do protagonismo dos trabalhadores e
das trabalhadoras camponesas. Utilizam-
se, também, discussões que dizem respeito
aos motivos reais que influenciam
diretamente o êxodo da juventude para
contextos urbanos, tendo entre as
referências Cover & Ceriolli (2015),
Brumer (2004) e Abramovay et.al. (1998).
Enfatizamos que, neste texto, não
apresentaremos respostas à problemática,
uma vez que trata de uma questão
complexa para a qual se exige um debate
profundo que envolve inúmeros aspectos
sócio-históricos, culturais e econômicos do
campesinato. Portanto, nos limitaremos a
discutir os possíveis caminhos que as
expressões teóricas já apresentaram.
Juventude camponesa enquanto
categoria de análise
Segundo o último Censo
Agropecuário realizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) no ano de 2006, dos 5.175.489
estabelecimentos rurais do país 84,4% são
constituídos de pequenas propriedades;
este quantitativo representa 80,25 milhões
de hectares, o que corresponde a 24,3% do
território nacional. No que diz respeito aos
aspectos populacionais, o Censo
Demográfico de 2010 identificou que 30
milhões de pessoas vivem em áreas rurais,
desta totalidade 27% jovens. Considerando
que a população brasileira jovem constitui-
se de 51 milhões de pessoas, decorre-se
que um em cada seis jovens vivem no
contexto rural brasileiro.
Diante de um cenário que envolve a
crise da agricultura camponesa e o avanço
sistemático de processos socioeconômicos
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predatórios, que transformam o campo
brasileiro em um território cada vez mais
discrepante do ponto de vista econômico, a
juventude rural encontra-se na linha de
frente como a faixa demográfica que é
atingida de forma mais dramática pela
expansão da falta de perspectivas das
famílias agricultoras. Este fato decorre pela
busca destes jovens por afirmações para
seu futuro, dentro do cenário
socioeconômico, e da necessidade de
construir projetos que geralmente estão
relacionados ao desejo de inserção no
mundo moderno.
Distante por muito tempo das
prioridades de programas de
desenvolvimento e pesquisas acadêmicas
que envolviam o espaço rural, essa
categoria vem gradativamente atraindo a
atenção dos teóricos em questões rurais.
Ao compreender a juventude rural como
agente de mudança, Castro (2005) aponta
que trata-se de um segmento que se
destacou nos últimos anos como foco de
investigação, pelo fato de que através dele
é possível elucidar o mundo rural
contemporâneo e entender as novas
estratégias utilizadas que objetivam
superar os problemas que os jovens
vivenciam em suas atividades de caráter
laboral.
Compreende-se que a definição da
categoria jovem seja uma das mais
complexas, considerando os momentos da
vida humana e as outras faixas etárias. Isso
decorre pelo consenso que por ser uma
etapa transitória está localizada em um
espaço bastante variável e movediço
iv
. Para
Carneiro e Castro (2007) as discussões que
remetem ao termo juventude configuram
em uma série de conceitos que muitas
vezes apresentam divergências.
Culturalmente estabelecida, a delimitação
desta etapa da vida é sempre imprecisa,
fazendo referência ao término dos estudos,
ao início da vida profissional, à saída da
casa paterna ou à formação de uma nova
família ou, simplesmente, diz respeito a
uma faixa etária. Discorrendo sobre o
desafio de abordar teoricamente a
juventude, Stropasolas (2002, p. 131)
sustenta que esta categoria é
“sociologicamente problemática”.
A literatura tem ressaltado, conforme
Menezes (2007), que a juventude rural
abrange grupos com situações históricas,
espaciais e sociais heterogêneas, assim
como são suas estratégias de reprodução
social. Existem aqueles que se estabelecem
nos espaços rurais e se envolvem
diretamente com o trabalho familiar; os
que desenvolvem trabalhos temporários em
safras específicas como o da cana-de-
açúcar; outros que recorrem a trabalhos
urbanos nas capitais ou cidades
metropolitanas de seu estado e também
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fora dele e, ainda, aqueles que se
capacitam para outras profissões através da
educação formal. Segundo Caldart (2002,
p.30), especificando esta diversidade, o
campo constitui-se de diferentes sujeitos.
São os pequenos agricultores, quilombolas,
povos indígenas, pescadores, camponeses,
assentados, reassentados, ribeirinhos,
povos da floresta dos projetos, caipiras,
lavradores, sem-terra, caboclos, meeiros,
boias-frias e outros mais. Deste modo,
neste estudo, quando nos referimos à
juventude camponesa estamos nos
remetendo aos sujeitos sociais que
compõem a estrutura da unidade produtiva
da família agricultora, que residem no
campo e de retiram grande parte do
sustento. São atores sociais importantes
para a transferência de heranças culturais
que vão desde o desenvolvimento de
práticas agrícolas tradicionais até outras
formas de manutenção de valores sociais,
políticos e religiosos que caracterizam e
conferem identidade a comunidade
camponesa.
A especificidade sociológica da
juventude camponesa deve-se a reprodução
e socialização no processo das atividades
agrícolas familiares que os distingue da
juventude urbana, ou até mesmo do espaço
rural, que não desenvolvem estas
atividades. As relações sociais que
atribuem particularidades e sentido a
juventude camponesa estão estabelecidas
na posição que estes ocupam na divisão
social do trabalho. Assim, o trabalho
assume lócus da produção material e
também simbólicos como as identidades,
ideias e representações, considerando que
os jovens integram a unidade produtiva
agrícola. Portanto, a participação no
processo de trabalho familiar é o traço
específico destes jovens agricultores
(Weisheimer, 2007, p. 239).
Para além do entendimento do
trabalho como garantia de sobrevivência a
partir do acesso a recursos econômicos, ele
faz alusão a um comportamento dos seres
humanos diante da realidade, no qual
manifesta seus saberes acumulados. No
mesmo processo em que o (a) jovem
camponês (a) utiliza a herança social para a
intervenção na realidade, é possível o
surgimento de outros saberes, uma vez que
o trabalho também se constitui enquanto
mecanismo de criação. Para Marx (1983, p.
149):
O trabalho é um processo entre
homem e natureza, um processo em
que o homem, por sua própria ação,
media, regula e controla seu
metabolismo com a ... ao atuar, por
meio desse movimento, sobre a
natureza externa a ele e ao modificá-
la, ele modifica, ao mesmo tempo, a
sua própria natureza.
Além de ser sujeito social, a
juventude camponesa, pode ser
compreendida como um sujeito político,
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uma vez que também está comprometida
com as organizações coletivas que exigem
mudanças estruturais para o campo. A
participação desta categoria na defesa da
construção do projeto contra hegemônico
permite que as relações políticas sejam
ressignificadas, uma vez que são
incorporadas através dela novas demandas,
diferentes estratégias de contestação e
outros movimentos ideológicos para conter
o avanço do projeto neoliberal.
Diante da correlação de forças entre
a territorialização do agronegócio e a
agricultura familiar que corresponde ao
atual contexto do campesinato é necessária
uma militância jovem mais incisiva na
defesa de um espaço humano de reforma
agrária. Ao apresentarem objetivos
antagônicos, não é possível que estes dois
padrões sociopolíticos coexistam de forma
harmoniosa: o pleno desenvolvimento de
um exige o retrocesso do outro. Neste
cenário, o protagonismo da juventude, a
presença e o interesse da permanência
destes no campo é imprescindível para que
seja executado o projeto histórico dos
movimentos sociais que defende a
soberania camponesa.
As pautas políticas da juventude que
vive no campo, conforme Galindo (2014),
evidenciam uma convergência que
circundam determinados temas como:
terra, educação, trabalho, lazer, cultura,
esporte, comunicação, tecnologias de
informação e participação. Assim, é
necessário que o Estado demonstre de
maneira mais estratégica a articulação
entre ações e programas específicos da
juventude e políticas estruturantes para o
desenvolvimento do campesinato. As
respostas que os governos apresentam, de
modo geral, normalmente expressas
através de ações de caráter pontual como
pequenos ajustes nos programas e editais
específicos, não são suficientes para
garantir a emancipação e a autonomia da
juventude camponesa. Para tanto, é preciso
acentuar a luta que apresenta como
bandeiras estratégicas a reforma agrária e a
Educação do Campo, com o objetivo de
superar o ciclo de disparidades que
historicamente caracterizam o campo
brasileiro.
Diálogos entre a Educação do Campo e
os múltiplos fatores do êxodo da
juventude camponesa
Ao iniciarmos esta reflexão sobre as
práticas educativas da Educação do Campo
frente ao desafio do êxodo da juventude
camponesa ressaltamos que não podemos
atribuir à responsabilidade de superação
desta problemática histórica às
experiências educativas que se
desenvolvem no campesinato, ainda que
emancipadoras. Partimos do pressuposto
que a Educação do Campo poderá
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contribuir para restringir este fluxo
migratório através dos valores e princípios
que defendem e que se materializam
através de práticas educativas. De modo
geral, o êxodo da juventude é o resultado
da escassez de políticas públicas
abrangentes para os agricultores
camponeses. Os programas e as políticas
atuais, no formato que se originam e
vigoram, não possibilitam contemplar, de
maneira expressiva, os sujeitos sociais que
constituem o campo brasileiro e garantir
transformações significativas que
permitam a autonomia da juventude para
consolidar seus projetos de vida.
Até meados dos anos 40 o Brasil era
um país predominantemente rural, todavia,
no início do século XXI, a população que
residia em centros urbanos chegava a
representar 85% de toda a população
(IBGE, 2010). Poucos países passaram por
um movimento tão intenso, como esse e,
como consequência, o espaço rural
brasileiro foi transformando em um
território de concentração cada vez mais
acentuada de renda. Outro agravante é o
fato de que a população rural, que declina
expressivamente desde os anos 60, torna-se
cada vez mais velha. Um dos fatores
relevantes que produziu este fenômeno, de
acordo com Maia e Sakamoto (2014) é o
decréscimo na taxa de fecundidade rural. O
envelhecimento da população é uma
constante em decorrência principalmente
de uma maior expectativa de vida humana
e, este fato resulta principalmente de
avanços na área da medicina e do
saneamento básico, o que refletiu
diretamente na melhoria da qualidade de
vida em inúmeros aspectos. Contudo, o
envelhecimento rural também mantém
relação intrínseca com o deslocamento da
juventude camponesa para a cidade.
Estas alterações significativas no
modo de vida e na produção camponesa,
são reflexos de modificações no campo
que tem privilegiado a agricultura
capitalista em detrimento da agricultura
familiar, excluída do modelo econômico
assumido por diferentes governos, situação
que permanece até os dias atuais. Estas
transformações profundas pelo qual o
campesinato passa foram originadas pela
reprodução e expansão da lógica capitalista
no campo que encontrou sua expressão
ainda na década de 1960, com a introdução
da chamada Revolução Verde
v
. Esta
modernização da agricultura contribuiu
para acelerar processos de desumanização
existentes e gerar outros novos, como a
estagnação de culturas alimentares e da
mão de obra, intensificação do sistema de
concentração fundiária e a utilização
predatória dos recursos naturais. Estas
transformações podem ser analisadas a
partir de duas dimensões: a primeira
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refere-se à deterioração ou perda dos
patrimônios culturais imateriais
constitutivos do campesinato, manifestados
através do saber acumulado e do
simbólico. As práticas tradicionais
agrícolas como o manejo do solo que
prioriza a manutenção da cobertura
vegetal, o controle natural das pragas e das
sementes passaram a ceder lugar as
inovações tecnológicas, cuja manifestação
ocorre com a manipulação genética,
utilização sistemática de máquinas
agrícolas e agrotóxicos.
A segunda dimensão diz respeito à
expropriação dos bens materiais dos
camponeses e camponesas que se traduzem
na desarticulação da unidade produtiva em
decorrência da expansão da monocultura,
da industrialização e da financeirização,
subordinando ainda mais a família
agricultora ao capital. Para Fernandes
(2008, p.50): “Esse processo significou
concentração de poder - consequentemente
- de riqueza e de território. Essa expansão
tem como ponto central o controle do
conhecimento técnico, por meio de uma
agricultura científica globalizada.
Diante de um contexto de afirmação
de políticas que priorizam o fortalecimento
do agronegócio, as práticas educativas da
Educação do Campo surgem desta
contradição e contrapõem a lógica
capitalista que marginaliza as
trabalhadoras e os trabalhadores ao
expandir-se no território da agricultura
camponesa, inviabilizando a permanência
destes no campo. Não é possível pensar a
construção da Educação do Campo para os
sujeitos que lutam por um modelo de
agricultura socialmente justo, e que
almejam o campo como espaço no qual
produzem sua existência, sem confrontar a
racionalidade capitalista que reconhece o
modo de vida dos (as) camponeses (as)
incompatível com o projeto modernizador
do país.
Assim, é fundamental, como aponta
Caldart, (2015, p.5), compreender a
Educação do Campo a partir da totalidade
a qual está inserida:
... que não se pense a Educação do
Campo fora da contradição
fundamental entre capital e trabalho
e, pela nossa opção de classe, sem o
objetivo de superação das leis
fundamentais de funcionamento da
lógica de produção que move o
capitalismo: exploração do trabalho e
exploração da natureza.
Apesar da expansão do capital no
território camponês, ou seja, no espaço
integrador e multidimensional, nos últimos
anos ocorreram avanços significativos,
tendo em vista, a promoção da Educação
do Campo, especialmente através de
políticas públicas que foram construídas de
forma articulada com o fortalecimento de
programas de outros ministérios
vi
. Para
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complementar, em 2014 foi sancionada a
Lei 12.960 de 27 de março que indicou
a necessidade de fazer constar exigência de
manifestação de órgão normativo do
sistema de ensino para o fechamento de
escolas do campo. Contudo, a prática
histórica de fechar escolas do campo
atingiu números alarmantes e torna-se fator
que motiva a saída dos jovens para centros
urbanos. Segundo dados do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira - INEP
(2014), o Brasil fechou mais de 37 mil
escolas rurais entre os anos de 2002 e
2015, isto representa queda de
aproximadamente 102 mil
estabelecimentos para 65 mil no referido
período.
Além do fechamento das escolas do
campo, outro desafio que motiva a saída
dos jovens para a cidade trata-se da
precariedade de condições físicas das
instituições escolares que se encontram
nestes espaços. Ainda, segundo dados do
INEP (2014) em relação às escolas do
campo, 13,5% não dispõem de água
potável, 11, 2% não tem acesso à energia
elétrica, 83,9% sem internet e 76% não
possuem laboratório de informática. A
estes fatores somam-se a frágil formação
das educadoras e educadores, poucas
escolas de Ensino Médio e escassos
projetos para a educação de jovens e
adultos.
Outra problemática muito grave é a
presença nas escolas do campo de
inúmeros programas do agronegócio. A
“Campanha Sou Agro”, que vem
ampliando expressivamente nos últimos
anos, por meio de projeto socioambiental
que chega mediatizado pelas secretarias
estaduais e municipais representa uma das
ações mais bem articuladas pelo
empresariado rural para desnaturalizar e
desvirtuar a Educação do Campo. O que
era uma iniciativa mida, nos anos
noventa, adquire bastante expressão nesta
disputa hegemônica atual e atinge
significativamente educandos, educandas e
docentes em todas as regiões do Brasil.
(Bruno, 2012).
As escolas do campo reconhecem e
ajudam a fortalecer a identidade dos
sujeitos que dela fazem parte através de
sua cultura, suas lutas, seu trabalho, sua
história. Elas representam não somente os
ideais sociais, mas também os valores
políticos que movem aquela população,
contribuindo no processo de humanização
do conjunto da sociedade. São espaços
vitais importantes de articulação dos
trabalhadores e trabalhadoras e, por isso, se
tornam o alvo principal no projeto de
descamponeização que os modelos
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hegemônicos têm desenvolvido por todo o
país.
Ao problematizar a relação entre o
modelo predominante atual no campo e a
demanda da formação dos trabalhadores,
Molina (2015) reflete que um dos fatores
que justifica a alta competitividade do
Brasil, enquanto um dos maiores
exportadores de commodities, refere-se à
utilização de força de trabalho do campo
com custos expressivamente baixos.
Acrescenta-se, também, a significativa
exploração, especialmente dos
trabalhadores nas lavouras de cana de
açúcar e a baixa escolarização/formação
destes sujeitos. E esta condição degradante
de vida do trabalhador desencadeia em
outros fenômenos como o da migração
sazonal que, para Cover e Ceriolli (2015),
trata-se de outra estratégia dos grandes
monopólios agrícolas com objetivo de
acumular capital ao se beneficiarem da
baixa escolaridade dos (as) jovens
trabalhadores (as). O desenvolvimento do
agronegócio não necessita de alto nível
escolar dos (as) camponeses (as), não
demanda grandes conhecimentos, somente
alguns processos requerem qualificação de
força de trabalho. Portanto, esta falta de
perspectiva diante das dificuldades de
acesso a instituições escolares com
infraestrutura e ensino de qualidade, cursos
universitários ou profissionalizantes tem
conduzido à vida urbana inúmeros (as)
jovens camponeses (as) em busca de
melhores condições sociais e econômicas.
Ainda no âmbito do fenômeno do
êxodo da juventude camponesa e suas
principais motivações, as pesquisas
destacam que durante a década de 1980,
especialmente, ocorria uma
homogeneização do êxodo rural, ou seja, a
família se deslocava para a cidade com o
objetivo de melhorar as condições de vida.
Contudo, atualmente, este cenário sofreu
alteração uma vez que as mulheres migram
mais do que os homens, o que produziu no
campo o fenômeno da masculinização. Em
estudo desenvolvido por Costa, Matos &
Valle (2015) identificou-se que os
processos de masculinização mais intensos
no Brasil se dão mais fortemente na região
Centro-Oeste, no oeste baiano e noroeste
mineiro. Este fato decorre da invisibilidade
feminina no campo motivada pela
desvalorização do trabalho desenvolvido
por elas e pela escassez de espaço
reservado para estas nas atividades
agrícolas, em que desempenham funções
somente de auxiliares (Brumer, 2004). As
jovens que se deslocam para a cidade,
sendo muitas vezes incentivadas pelos
próprios pais, buscam oportunidades de
trabalho remunerado e também por
reconhecimento. Para Abramovay et al.
(1998), essa predominância de migração
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feminina não se relaciona a um mercado de
trabalho urbano favorável para esse
gênero, porém, es ligado a
desvalorização do seu trabalho no campo e
a ausência de perspectiva.
A presença participante das mulheres
aumentou com o passar dos anos e muitos
espaços foram ocupados pelas agricultoras
nas diversas instâncias dos movimentos
sociais do campo e de outras organizações
coletivas. Conforme estudos e ações da
Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura - FAO (2012),
foi imprescindível o papel das mulheres
para o desenvolvimento agrícola
sustentável e para garantir a segurança
alimentar do país. Mais recentemente, na
tentativa de romper a invisibilidade
feminina foi garantido o direito a reforma
agrária, o acesso ao crédito rural, a
participação e valorização na Política
Nacional de Assistência Técnica e
Extensão Rural - PNATER. Todavia,
apesar desta outra perspectiva sobre o
trabalho das mulheres na agricultura, estas
permanecem pouco reconhecidas.
As desigualdades de gênero
começam nas famílias, são reforçadas
nas escolas, religiões, meios de
comunicação que cotidianamente
alimenta o machismo... Uma das
expressões e consequências deste
padrão de gênero desigual é o próprio
trabalho socialmente necessário ...
considerado como trabalho invisível,
geralmente realizado pelas mulheres
e não considerado como trabalho
porque não está diretamente
vinculado à geração de lucro e renda,
mas sim a subsistência e a
manutenção da família (MST, 2013).
Quando analisamos a prática da
agricultura familiar camponesa enquanto
prática educativa, percebemos o quanto ela
é humanizadora. A compreensão do campo
como modo de vida contribuiu para uma
recriação histórica, para a reexistência,
uma emancipação de padrões que nos
aproxima ou nos torna modelos ideais
projetados por ideologias hegemônicas
com o propósito de facilitar, diante de um
grupo homogeneizado, suas práticas
opressoras. Assim, é necessário reforçar os
princípios da Educação do Campo, que
buscam dialogar com “uma determinada
tradição pedagógica crítica, vinculada a
objetivos políticos de emancipação e de
luta por justiça” (Caldart, 2004, p. 14).
Os elementos relacionados à
desigualdade de gênero, especialmente
aqueles que se relacionam a dimensão do
trabalho, se integram na constituição das
identidades dos sujeitos do processo
educativo, aspecto elementar a ser
ressaltado na prática educativa, e que vai
forjar sua perspectiva de mundo e a
maneira como se relacionam socialmente.
Tais aspectos são sintetizados a partir das
condições objetivas de produção de
existência e o reconhecimento de práticas
opressoras é imprescindível para a
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emancipação dos sujeitos, sendo este um
dos princípios que norteiam as práticas
educativas da Educação do Campo. Deste
modo, os diálogos encontram sustentação
no concreto, na vida prática, nas
experiências, articulando-se à outras
maneiras de intervenção, considerando que
as desigualdades de gênero, um dos
catalisadores do fenômeno do êxodo rural,
será superado a partir de alterações nas
condições objetivas dos meios de produção
e de cultura.
Além de fatores econômicos e
oportunidades distintas conforme o gênero,
o êxodo da juventude camponesa é,
também, motivado pela busca desta
categoria por outra identidade. As
diferenças e desigualdades que
caracterizam a cidade e o campo no Brasil
ajudam a estigmatizar os (as) camponeses
(as) diante de outros grupos territoriais. Os
limites culturais, econômicos e sociais a
que estão expostos os trabalhadores e
trabalhadoras do campo, como a
dificuldade do acesso a bens e serviços,
ainda representam um dos fatores que
provocam a exclusão e a invisibilização
desses sujeitos. Conforme Wanderley
(2007) os jovens enfrentam rótulos
preconceituosos que o imaginário urbano
constrói a respeito do mundo rural, que se
relacionam ao caipira, arcaico e
preguiçoso. Isto revela uma condição de
inferioridade desses (as) jovens nas suas
distintas relações estabelecidas. Nesse
contexto, a juventude tem elaborado
formas próprias de relacionar com tal
situação e procurado encontrar alternativas
que lhes possibilite superar esse cenário e
serem reconhecidos e vistos socialmente.
A participação da juventude em
organizações que representam os
trabalhadores e as trabalhadoras rurais,
inclusive compondo os quadros dirigentes,
exemplificam estas estratégias de
visibilidade.
Atualmente, ainda é muito
expressiva a tentativa de depreciação da
vida rural, utilizando para tanto a indústria
da cultura como instrumento que naturaliza
a diluição das fronteiras entre o rural e o
urbano e colabora na desconstrução da
identidade da juventude camponesa
vii
. A
negação, por parte de considerável fração
desta juventude, da condição social dos
trabalhadores e trabalhadoras rurais
enfatiza o repúdio a vivenciar a
desvalorização, o desmerecimento e a
inferioridade nas relações sociais. A
necessidade de interação social, inclusão e
reconhecimento caracterizam os inúmeros
segmentos de jovens camponeses e ao se
relacionarem em espaços sociais
identificados como urbanos muitos buscam
assimilar os comportamentos e os valores
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do que é considerado avançado, negando-
se a manifestar traços de sua cultura.
A grande questão é tratar a
valorização e o resgate da identidade
camponesa como uma prática pedagógica,
social e política, pois trata-se de recusar a
concepção do campo como espaço atrasado
e que se encontra fadado ao
desparecimento, diante do avanço
sistemático de um projeto que se utiliza,
também, de uma cultura hegemônica que
tem a pretensão de abranger e representar
povos tão heterogêneos. Para tanto, a
materialização da Educação do Campo
exige práticas educativas coerentes com as
especificidades do campesinato e que
estejam articuladas a uma proposta
curricular que contemple tais
peculiaridades, mesmo porque ela não se
realizaria de outra forma para os
movimentos sociais e organizações que
representam o coletivo dos trabalhadores e
trabalhadoras do campo. No entanto, um
dos maiores desafios que se apresentam
atualmente para a construção da Educação
do Campo diz respeito à autonomia das
instituições escolares em organizar um
currículo próprio. Ainda que esteja
garantido pela Lei 9.394/96 em seu
artigo 26, quando trata da incorporação de
características locais e regionais da cultura
e da sociedade no currículo escolar para o
ensino fundamental, a elaboração deste
documento específico ainda está distante
de se concretizar na maioria das
comunidades escolares camponesas. No
plano real, as escolas do campo encontram-
se, em grande parte, subordinadas as
secretarias estaduais e municipais de
educação, que por sua vez estão
comprometidas em alcançar metas
estabelecidas por órgãos de diversas
esferas do governo. Esta dependência vai
desde a interferência na parte de gestão, na
construção de um currículo, calendário e
materiais didáticos e até mesmo na
contratação e formação dos educadores e
educadoras. Este processo homogeneizado,
por não distinguir as demandas de cada
contexto, representa sérios entraves no
avanço da concretização da educação para
a classe trabalhadora camponesa. Um
processo educativo padronizado tem como
objetivo formar sujeitos para um espaço
único, para as mesmas demandas históricas
e desenvolver as mesmas reproduções
socioculturais. Deste modo, o aspecto mais
grave desta problemática é o fato de
constituir-se enquanto fator que promova o
êxodo da juventude camponesa para
contextos urbanos, uma vez que, foram
oferecidas, através das instituições
escolares, condições e mecanismos para
serem sujeitos históricos e sociais destes
espaços.
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Diante deste cenário, verifica-se que
o grande compromisso e desafio da
educação camponesa para os movimentos
sociais é desenvolver a capacidade crítica e
emancipatória das trabalhadoras e
trabalhadores do campo. Ressalta-se que a
valorização e resgate da história, cultura e
identidade, através de uma política
nacional de Educação do Campo,
constituem elementos imprescindíveis para
a materialização de práticas libertadoras.
Portanto, o compromisso ético deste
projeto educativo é expresso pela sua
vinculação à dimensão histórica da
sociedade.
Quando compreendemos a educação
como um processo que se refere à
emancipação humana, percebemos quanto
os valores do campo fazem parte desta
ação de superar um modelo
socioeconômico concentrador que adquire
cada vez mais espaço no Brasil e na
América Latina. A questão, portanto, é
mais fundamental, é voltar-se às raízes
culturais do campo e trabalhá-las, integrá-
las como uma herança coletiva que
movimenta e inspira lutas por direitos, pela
terra, por um projeto democrático. É
necessário romper a visão de que a cultura
camponesa é paralisante, voltada para a
manutenção de formas de valores arcaicos.
O Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra, por exemplo, tem demonstrado
o quanto esta concepção incomoda, por
tudo que o campesinato tem apresentado
de dinâmico e avançado (Arroyo, 2015). O
debate atual em torno das práticas
agroecológicas tem sido exemplo da
capacidade dos (as) camponeses (as) de
estarem à frente de discussões que
ressignificam a condição humana e sua
relação com a natureza. Foram os (as)
camponeses (as), através dos movimentos
sociais, que instigaram os espaços
acadêmicos para a investigação da
agroecologia como prática necessária para
o desenvolvimento de uma agricultura
socialmente justa e culturalmente sensível.
Do mesmo modo, as discussões sobre o
avanço da territorialização do agronegócio
no Brasil e o impacto na garantia da
soberania alimentar também foram
intensificados através dos movimentos
sociais do campo e, estes debates, se
estenderam para outros espaços por
intermédio de tais organizações coletivas.
viii
As experiências que o campesinato
brasileiro vem revelando nas últimas
décadas, sejam elas de caráter político,
cultural e educativo, têm demonstrado que
ocorre uma reação de enfrentamento às
distintas formas de marginalização aos
quais os (as) camponeses (as) estão sendo
submetidos (as) e, cujos mecanismos desta
contraposição, são forjados em muitos
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espaços e ocasiões pelo protagonismo da
juventude. Este engajamento aponta que a
permanência da juventude no campo
poderá vincular-se a emancipação destes
sujeitos, alcançada através de melhorias na
qualidade de vida dos trabalhadores e
trabalhadoras camponesas, nas suas
múltiplas dimensões, garantidas por meio
de uma mudança fundiária estrutural
proveniente de uma reforma agrária ampla
e massiva.
Considerações Finais
O êxodo rural consiste em um
processo que se intensificou na segunda
metade do século passado e que permanece
acentuado, especialmente entre jovens que
saem do campo para encontrar outras
oportunidades e acabam se fixando no
meio urbano, retirando-se de vez do
campo. Este fenômeno é resultante de
inúmeros fatores, em que sobressai a falta
de políticas públicas abrangentes que
garantam a superação de intensas
desigualdades socioeconômicas. Esta
problemática está intrinsecamente
relacionada com a construção da Educação
do Campo e dos desafios referentes à
materialização dos seus princípio e valores.
E, assim, não podem ser analisadas
distante das políticas públicas de Educação
do Campo que são imprescindíveis para a
garantia deste projeto educativo. Portanto,
a superação do êxodo da juventude
camponesa deverá realizar-se no âmbito da
construção e execução de políticas públicas
sólidas e que contemplem diversas
dimensões da vida destes sujeitos, como os
processos sociais, culturais e econômicos.
Tais aspectos, organizados dentro de um
espaço e tempo peculiar, constituem um
modo de vida que permanece apesar das
diversas transformações pelas quais o
campesinato passou.
Para que se realize a implantação de
um desenvolvimento que atenda as
demandas dos coletivos camponeses, é
fundamental que as políticas educacionais
contemplem a diversidade e extensão do
campesinato, reconhecendo a realidade
objetiva das populações a que se destinam.
Estas políticas educacionais precisam
considerar as possibilidades para o
desenvolvimento do campo, mas não como
parte estanque e isolada da sociedade; o
campo deve ser pensado e entendido como
parte componente, como parte constituinte,
como parte integrante do território e da
realidade social, política e econômica
brasileira. O campesinato precisa ser
apreendido tanto em sua totalidade quanto
em sua heterogeneidade, nas suas
contradições, como espaço de luta que
abriga opiniões e interesses distintos de
grupos diversos e no protagonismo da
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juventude, engajada nos movimentos
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i
Instituído através da portaria 10/98, em 16 de
abril de 1998 pelo Ministério Extraordinário da
Política Fundiária, sendo incorporado ao Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) em 2001.
ii
Criado em 2007 pelo Ministério da Educação
como iniciativa da então Secretaria de Educação
Continuada Alfabetização e Diversidade SECAD.
iii
Previsto pelo Decreto 7.352 foi instituído por
meio da Portaria nº 86, de 1º de fevereiro de 2013.
iv
Neste texto utilizamos os parâmetros definidos
pelo Estatuto da Juventude (Lei no 12.852, de 5 de
agosto de 2013), que considera jovem a população
entre 15 e 29 anos.
v
Pacote tecnológico representado pelos insumos
químicos, sementes de laboratório, irrigação,
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mecanização e grandes extensões de terra, cujo
objetivo foi ampliar a oferta de alimentos por meio
da valorização do aumento da produtividade
agrícola através de uma tecnologia de controle da
natureza de base científico-industrial.
vi
A exemplo disto temos a instituição do Programa
Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF),
Política Nacional de Agroecologia e Produção
Orgânica (PNAPO) e o Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA), o Programa Nacional de
Alimentação Escolar (PNEA)
vii
Ressalta-se que a literatura e a música popular
contribuíram de maneira significativa para este
processo de mistificação dos trabalhadores e
trabalhadoras camponesas, que resultou nesta visão
discriminatória. Dentre as imagens que se
afirmavam sobre o homem do campo, sobressaiu a
figura depreciativa que Monteiro Lobato construiu
através do “Jeca Tatu”, em 1914, que representava
a projeção antagônica do homem moderno. A partir
da constituição das primeiras cidades, ainda no
início do século XX, principalmente no eixo Rio-
São Paulo, a vida campestre era compreendida
como grande sofrimento, imersa em privações, e
esta ideia é expressa e difundida significativamente
por inúmeras canções populares, adquirindo
destaque a composição “No Rancho Fundo”, de
Ary Barroso (Linhares & Silva, 1999).
viii
Ver Borsatto, R. S., & Carma, M. S. (2013).
Construção do discurso agroecológico no
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
RESR, 51(4), 645-660.
Informações do artigo / Article Information
Recebido em : 27/02/2017
Aprovado em: 02/05/2017
Publicado em:07/12 /2018
Received on February 27th, 2017
Accepted on May 02nd, 2017
Published on December 07th, 2018
Contribuições no artigo: A autora foi responsável pela
elaboração, análise e interpretação dos dados; escrita e
revisão do conteúdo do artigo, e aprovação da versão final
publicada.
Author Contributions: The author was responsible for the
designing, delineating, analyzing and interpreting the data,
production of the manuscript, critical revision of the content
and approval of the final version published.
Conflitos de interesse: A autora declarou não haver
nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Orcid
Marizete Andrade da Silva
https://orcid.org/0000-0001-5901-6814
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Silva, M. A. (2018). Interfaces entre a Educação do
Campo e o êxodo rural da juventude camponesa. Rev.
Bras. Educ. Camp., 3(3), 970-990. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2018v3n2p970
ABNT
SILVA, M. A. Interfaces entre a Educação do Campo e o
êxodo rural da juventude camponesa. Rev. Bras. Educ.
Camp., Tocantinópolis, v. 3, n. 3, set./dez., p. 970-990,
2018. DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2018v3n2p970