Revista Brasileira de Educação do Campo
ARTIGO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-4863.2017v2n2p447
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul./dez.
2017
ISSN: 2525-4863
447
Interculturalidade na formação de professores do campo:
análise de uma experiência
Luiz Otávio Costa Marques
1
1
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM. Faculdade Interdisciplinar em
Humanidades. Rodovia MG-367, km 583, Alto da Jacuba, Diamantina - MG. Brasil. luizocmarques@gmail.com.
RESUMO. O presente trabalho visa promover uma reflexão
sobre a proposta pedagógica de um curso de licenciatura em
Educação do Campo de uma universidade federal brasileira sob
a perspectiva teórica da interculturalidade. Entende-se
interculturalidade como um projeto contra-epistemológico e
contra-hegemônico que preconiza o reconhecimento e o respeito
à diversidade cultural e à emancipação política e social de povos
subalternizados. Instituído em 2013 para atender à demanda do
Edital SESU/SETEC/SECADI 2/2012, o curso em pauta tem
como objetivo formar professores com habilitação em Ciências
da Natureza ou Linguagens e Códigos para atuar nos anos finais
do ensino fundamental e no ensino médio de escolas do campo.
Este estudo de natureza qualitativa-exploratória se vale de
pesquisa documental e bibliográfica. A reflexão teórica se a
partir da ecologia dos saberes (Santos, 2014), que problematiza
as relações de colonialidade do conhecimento científico com
outros tipos de conhecimento, assim como das pesquisas sobre
interculturalidade (Fleuri, 2001; Walsh, 2009, 2010; Estermann,
2010; Guilherme & Dietz, 2015) e Educação do Campo
(Caldart, 2009; Freitas, 2011; Antunes-Rocha, 2011; Molina &
Freitas, 2011; Molina & Antunes-Rocha, 2014). Espera-se com
este trabalho estimular propostas que dialoguem com o
referencial da interculturalidade, ampliando as perspectivas
teóricas sobre a formação inicial de professores no contexto da
Educação do Campo no Brasil.
Palavras-chave: Interculturalidade, Educação do Campo,
Formação de Professores, Políticas Públicas, Colonialidade.
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul./dez.
2017
ISSN: 2525-4863
448
Interculturality in the education of countryside teachers:
analysis of an experience
ABSTRACT. The present work aims to promote a reflection on
the pedagogical proposal of an undergraduate course in
Countryside Education from a Brazilian federal university under
the theoretical perspective of interculturality. Interculturality is
understood as a counter-epistemological and counter-hegemonic
project that advocates the recognition and respect for cultural
diversity and the political and social emancipation of
subalternized peoples. Established in 2013 to meet the demand
of SESU/SETEC/SECADI Notice no. 2/2012, the course aims to
train teachers in the areas of Natural Sciences or Languages and
Codes to work in the final years of elementary education and in
high school in rural areas. This qualitative-exploratory study is
based on documental and bibliographic research. The theoretical
reflection comes from the ecology of knowledge’s (Santos,
2014), which problematizes the relations of coloniality of the
scientific knowledge with other types of knowledge, as well as
studies on interculturality (Fleuri, 2001; Walsh, 2009, 2010;
Estermann, 2010; Guilherme & Dietz, 2015) and Countryside
Education (Caldart, 2009; Freitas, 2011; Antunes-Rocha, 2011;
Molina & Freitas, 2011; Molina & Antunes-Rocha, 2014). It is
hoped that this work will stimulate proposals that dialogue with
the intercultural reference framework, broadening the theoretical
perspectives on the initial education of teachers in the context of
Countryside Education in Brazil.
Keywords: Interculturality, Countryside Education, Teacher
Education, Public Policies, Coloniality.
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul./dez.
2017
ISSN: 2525-4863
449
Interculturalidad en la formación del profesorado del
campo: análisis de una experiencia
RESUMEN. El presente estudio tiene como objetivo reflexionar
sobre la propuesta pedagógica de un grado en Educación del
Campo de una universidad federal brasileña por la perspectiva
teórica de la interculturalidad. Se comprende interculturalidad
como un proyecto contra-epistemológico y contra-hegemónico
que aboga por el reconocimiento y respeto a la diversidad
cultural y la emancipación social y política de las personas
subordinadas. Establecido en 2013 para satisfacer la demanda
del Edicto SESU / SETEC / SECADI 2/2012, el curso en
cuestión tiene como objetivo formar maestros con la
especialización en ciencias naturales o lenguajes y códigos para
actuar en los últimos años de la escuela primaria y la enseñanza
media de las escuelas para los campesinos. Este estudio de
naturaleza cualitativa y exploratoria se basa en la investigación
bibliográfica y documental. La reflexión teórica se produce
desde la ecología de los saberes (Santos, 2014), que analiza las
relaciones de colonialidad del conocimiento científico con otros
tipos de conocimiento, así como la investigación sobre
interculturalidad (Fleuri, 2001; Walsh, 2009, 2010; Estermann,
2010; Guilherme & Dietz, 2015) y Educación del Campo
(Caldart, 2009; Freitas, 2011; Antunes-Rocha, 2011; Molina &
Freitas, 2011; Molina & Antunes-Rocha, 2014). Se espera que
este trabajo estimule las propuestas que se comunican con el
marco de la interculturalidad, promoviendo la ampliación de las
perspectivas teóricas sobre la formación inicial del profesorado
en el contexto de la Educación del Campo en Brasil.
Palabras clave: Interculturalidad, Educación del Campo,
Formación Docente, Política Pública, Colonialidad.
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
450
Introdução
Devido às profundas mudanças
estruturais na sociedade contemporânea
nas últimas décadas, impulsionadas
principalmente pela globalização e pela
diáspora de povos perseguidos ou cujos
países estão em guerra ou sem condições
de sobrevivência, discussões teóricas sobre
educação e interculturalidade têm se
intensificado de forma considerável. De
acordo com as orientações da Organização
para a Educação, a Ciência e a Cultura das
Nações Unidas UNESCO (2006, p. 12)
sobre educação intercultural, “os conceitos
de cultura e educação estão, em essência,
entrelaçados”
i
. Explica-se que “a cultura
modela o conteúdo educacional, modos
operacionais e contextos, uma vez que ela
molda nossos quadros de referência, nossas
maneiras de pensar e agir, nossas crenças
e, até mesmo, nossos sentidos” (UNESCO,
2006, p. 12-13). A interculturalidade é
definida como um “conceito dinâmico e se
refere à relação de constante evolução
entre grupos culturais” (UNESCO, 2006,
p. 17). De acordo com o documento, a
interculturalidade pressupõe
multiculturalismo, trocas interculturais
equitativas, diálogo e respeito mútuo entre
culturas.
Tendo em vista que a discussão sobre
interculturalidade e o respeito à diferença e
à diversidade cultural na educação emerge
no Brasil e na América Latina devido aos
movimentos sociais (Fleuri, 2001), este
trabalho objetiva discutir aspectos de uma
proposta pedagógica de um curso de
formação de educadores do campo de uma
universidade federal brasileira, o qual é
fruto de um desses movimentos, a saber: o
Movimento de Educação do Campo.
Surgido nos finais dos anos 1990 e
início dos anos 2000, esse movimento,
conforme Molina e Freitas (2011), visa
reduzir as desigualdades e a precarização
do acesso à escolarização nos diferentes
níveis no meio rural. Vale frisar que o
projeto de Educação do Campo está
associado a uma proposta mais abrangente
de educação, voltada à emancipação social
e política dos sujeitos do campo e à
erradicação das desigualdades na
sociedade.
Tendo a sua origem no processo de
luta dos movimentos sociais para
resistir à expropriação de terras, a
Educação do Campo vincula-se à
construção de um modelo de
desenvolvimento rural que priorize
os diversos sujeitos sociais do
campo, isto é, que se contraponha ao
modelo de desenvolvimento
hegemônico que sempre privilegiou
os interesses dos grandes
proprietários de terra no Brasil, e
também se vincula a um projeto
maior de educação da classe
trabalhadora, cujas bases se
alicerçam na necessidade da
construção de um outro projeto de
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
451
sociedade e de Nação (Molina &
Freitas, 2011, p. 19).
Assim, para nortear a reflexão
apresentada neste trabalho, são utilizados
estudos sobre a ecologia dos saberes
(Santos, 2014), que trata das relações de
colonialidade do conhecimento científico
com outros tipos de conhecimento na
sociedade contemporânea, sobre
interculturalidade (Fleuri, 2001; Walsh,
2009, 2010; Estermann, 2010; Guilherme
& Dietz, 2015) e sobre o movimento da
Educação no Campo no Brasil (Caldart,
2009; Antunes-Rocha, 2011; Freitas, 2011;
Molina & Freitas, 2011; Molina &
Antunes-Rocha, 2014). No que se refere à
metodologia utilizada, neste estudo de
caráter qualitativo-exploratório, foram
desenvolvidas pesquisas documental e
bibliográfica.
Esta reflexão teórica se justifica
devido ao fato de que no contexto
brasileiro são escassos tanto os estudos
como as experiências educativas
inovadoras baseados nos princípios da
educação intercultural. Além disso, vale
lembrar que os casos de racismo,
discriminação social e de gênero
reportados na mídia em nosso país
recentemente são inúmeros, o que indica
que a adoção da perspectiva intercultural
nas escolas públicas brasileiras possa ser
considerada uma alternativa relevante para
lidar com essas questões no âmbito escolar
e promover mudanças significativas no
contexto atual.
Inicialmente, neste estudo, são
examinados os conceitos de
interculturalidade e educação intercultural
nos contextos global e local. Em segundo
lugar, um breve histórico da Educação do
Campo em nosso país e a visão dessa
perspectiva teórica sobre a formação inicial
de professores para atuar no meio rural são
apresentados. Em seguida, as políticas
educacionais brasileiras voltadas à
Educação do Campo que originaram a
instituição de cursos superiores de
formação de professores do campo em
nosso país, como a licenciatura cuja
proposta pedagógica é objeto de análise
neste trabalho, são examinadas. Ao final,
essa proposta pedagógica é descrita e
analisada, visando ampliar perspectivas
teóricas sobre a formação inicial de
professores no contexto da Educação do
Campo.
A interculturalidade e a educação
intercultural
A noção de interculturalidade
preconizando relações de interdependência
entre culturas dialoga com a visão do
filósofo e teólogo suíço Josef Estermann,
estudioso das culturas indígenas da
América Latina. Para o autor, a
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
452
interculturalidade é definida como
“relações simétricas e horizontais entre
duas ou mais culturas, visando enriquecê-
las mutuamente e contribuir para uma
maior plenitude humana” (Estermann,
2010, p. 33). Ele aponta ainda que o
diálogo intercultural é um processo de
aprendizagem e transformação entre as
pessoas envolvidas, resultando em
alteridade cultural.
Um verdadeiro diálogo nunca é
conservador, isto é: nunca se sabe
como se sairá de um diálogo. A
própria postura e identidade podem
sofrer alterações ao longo deste
processo dialógico e no final um/a
não é mais a mesma pessoa que era
no momento em que o processo foi
iniciado. (Estermann, 2010, p. 42).
Sobre a relação entre
interculturalidade e educação, Walsh
(2010) explica que esse tema passa a estar
presente nos debates públicos e nas
políticas educacionais da América Latina a
partir dos anos 1980. A autora explica que,
embora esse amparo legal seja fruto das
lutas de movimentos sociais, visando à
emancipação política e social das
populações subalternizadas, a
interculturalidade também pode ser vista a
partir de uma perspectiva definida pelo
autor peruano Fidel Tubino (2005 apud
Walsh, 2010, p. 77-78) como “funcional”.
Esta se articula com o sistema de poder
dominante e a lógica do neoliberalismo:
... a perspectiva (funcional) de
interculturalidade ancora-se no
reconhecimento da diversidade e
diferença culturais, objetivando a
inclusão da mesma no interior da
estrutura social estabelecida. A partir
desta perspectiva que visa
promover o diálogo, a convivência e
a tolerância , a interculturalidade é
“funcional” para o sistema existente,
não toca as causas da assimetria e da
desigualdade sociais, tampouco
“questiona as regras do jogo”, por
isso “é perfeitamente compatível com
a lógica do modelo neoliberal
existente” (Walsh, 2010, p. 77-78).
Essa perspectiva de
interculturalidade contrapõe-se à
perspectiva de interculturalidade crítica,
defendida por Walsh (2010, p. 76), como
um “projeto político-social-epistêmico e
como pedagogia de-colonial
ii
, dando pistas
para uma práxis distinta”. Ou seja, o
projeto é político visa mudar as
configurações coloniais de poder no
modelo político dominante no mundo ,
social ambiciona extinguir as
desigualdades sociais e culturais ,
epistêmico valoriza outras formas de
produção de saberes e conhecimentos,
além dos científicos e tecnológicos , e
ético objetiva acabar com as relações de
exclusão, subalternização, discriminação e
de raça. É uma pedagogia decolonial, pois
visa transformar a visão modernista,
ocidental e capitalista de educação para
uma visão de educação voltada para a
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
453
transformação, humanização e a
decolonização.
Walsh (2010) ressalta que a
interculturalidade crítica é um projeto, ou
seja, ainda não existe na prática. No campo
educacional da América Latina, destaca
algumas tentativas de mudança como a
educação intercultural bilíngue nos anos
1980, a qual estabelecia um programa de
educação plurilíngue e multiétnica para os
povos indígenas, e as reformas
constitucionais dos anos 1990, que “tanto
na sua prática como na sua conceituação,
esforçaram-se mais por adequar a educação
às exigências da modernização e do
desenvolvimento do que ‘interculturalizar’
o sistema educativo” (Walsh, 2010, p. 83).
Em outras palavras, eram propostas que
reforçavam o discurso da diversidade
étnica e cultural, mas que na prática não
promoviam nenhuma mudança a favor da
interculturalidade crítica.
Conforme a autora, somente a partir
do século XXI surgem propostas que mais
se aproximam de uma educação crítica
intercultural. Ela cita, como exemplo, um
novo modelo educativo no México
denominado “Educação Intercultural”, o
qual se estende do ensino básico até a
universidade, tendo como eixo central a
interculturalidade. Apesar de ser um
grande avanço, o modelo, de acordo com a
pesquisadora, ainda associa a questão da
interculturalidade com os indígenas.
Aparentemente, a compreensão do
intercultural ainda está focada no
indígena; embora exista um
reconhecimento de que a educação
intercultural é para todos, sua
proposta facilmente acaba sendo um
pouco mais do que a incorporação de
temas relacionados à diversidade
linguística e cultural. Pensar a
educação intercultural como um
processo de estudo e aprendizagem
inter-epistêmicos, ainda parece
distante, na maioria dos países, de
uma nova prática e política
educativas. (Walsh, 2010, p. 85).
No contexto brasileiro, as propostas
educacionais que dialogam com a
perspectiva teórica da interculturalidade
são poucas. Fleuri (2001) aponta que a
elaboração de propostas de trabalho
pedagógico que considerem efetivamente a
complexidade cultural do Brasil encontra
dificuldades, uma vez que são raros os
estudos e as experiências educativas
inovadoras sobre esse tema. Já na América
Latina, explica o autor, são várias as
experiências educativas voltadas a uma
perspectiva que respeita a diversidade
cultural de diferentes grupos sociais e
culturais marginalizados. Como apontado
pelo autor, essas experiências educativas
surgiram principalmente a partir dos anos
1950 com os movimentos de cultura
popular, que posteriormente vieram a ser
chamados de educação popular.
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
454
No Brasil, trabalhos educativos e
iniciativas que valorizavam a cultura
popular surgiram no início da década de
1960 com as grandes mobilizações urbanas
e camponesas. Entre essas iniciativas, as
quais foram lideradas por intelectuais,
estudantes e movimentos eclesiais, Fleuri
(2001) destaca os Centros Populares de
Cultura (CPGs), o Movimento de
Educação de Base (MEB), o Movimento
de Cultura Popular (MCP) e a campanha
“De no chão também se aprende a ler”.
Como exemplo de trabalho educativo, o
pesquisador cita a proposta de educação de
adultos de Paulo Freire.
Fleuri (2001) explica que, com o
Golpe Militar de 1964, esses movimentos
passaram a ser controlados e censurados, o
que favoreceu a homogeneização e a
alienação cultural no país. Entretanto, no
final dos anos 1970, segundo o autor, esse
silenciamento começou a ser rompido,
favorecendo o surgimento no cenário
nacional de movimentos populares
voltados às lutas sociais no plano
econômico-político. Destaca, entre esses
movimentos, as associações de moradores,
as comunidades eclesiais de base (CEBs),
os movimentos operários e sindicais e os
movimentos ligados à questão agrária.
Esses movimentos, de acordo com Fleuri
(2001), começaram a se articular
transversalmente com a defesa de suas
identidades de caráter étnico (tal como os
movimentos dos indígenas e dos negros),
de gênero (tal como os movimentos das
mulheres e dos homossexuais) e de
geração (tal como os movimentos de
meninos e meninas de rua e da terceira
idade). Para o autor, a perspectiva da
diversidade e das relações culturais
emergentes nos movimentos sociais é a
base da educação intercultural na América
Latina e, particularmente, no Brasil. Na
visão do autor, “é a partir deste ponto de
vista que pensamos em estabelecer o
diálogo com os estudos que vêm se
fazendo hoje no campo da educação
intercultural” (Fleuri, 2001, p. 48).
Nessa perspectiva, a diferença e a
identidade cultural de cada grupo social
são reconhecidas, porém, ao mesmo
tempo, busca-se “desenvolver a interação e
a reciprocidade entre grupos diferentes,
como fator de crescimento cultural e
enriquecimento mútuo” (Fleuri, 2000, p.
49). No que se refere à prática pedagógica
de educandos provenientes de grupos
socialmente marginalizados e excluídos, a
interculturalidade pode ser vista como uma
proposta para superar o monoculturalismo
na educação.
O foco central da prática educativa
deixa de ser a transmissão de uma
cultura homogênea e coesa. A
preocupação fundamental da
educação passa a ser a elaboração da
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
455
diversidade de modelos culturais que
interagem na formação dos
educandos. Tal deslocamento de
perspectiva legitima as culturas de
origem de cada indivíduo e coloca
em xeque a coesão da cultura
homogênea. (Fleuri, 2001, p. 50).
Cabe aqui questionar: como seria o
trabalho pedagógico sob o ponto de vista
da educação intercultural no contexto
brasileiro? Conforme a opinião de Fleuri
(2001), esse trabalho consistiria na
problematização e desconstrução de
imagens e estereótipos presentes na
realidade brasileira, os quais encobrem
grande parte dos conflitos relacionados a
questões interculturais e que “enfraquecem
o enorme potencial que pode advir do
confronto e da interação crítica entre
diferentes grupos sociais” (Fleuri, 2001, p.
50). O autor acrescenta que
Esta perspectiva problematizadora da
dimensão intercultural pode oferecer
aos agentes institucionais ou
populares instrumentos
indispensáveis à sua prática
educativa. De modo particular,
proporcionar meios para promover a
formação da autoconsciência e
portanto de “presença” e ação em
sujeitos que vivem em ambientes
marginalizados (rurais e urbanos). A
perspectiva intercultural da educação
pode, ainda, estimular os
movimentos sociais a focalizar, na
própria reflexão e na própria prática,
a dialética identidade e alteridade. Ou
seja, estimular a consciência das
diferenças e das relações entre os
agentes e os pontos de vista que nele
se articulam. (Fleuri, 2001, p. 50).
Ou seja, a educação intercultural
pressupõe práticas educativas que
promovam o reconhecimento da
diversidade cultural por meio da reflexão
sobre questões de identidade e alteridade.
Assim, essa problematização pode ser vista
como um objetivo a ser atingido no
contexto escolar, uma vez que prepara os
educandos para lidar com a diferença no
seu dia a dia, contribuindo para reduzir
preconceitos e discriminação de todos os
tipos.
Fleuri (2001), corroborando a
opinião de Nanni (1988, p. 50), aponta que
a interação promovida pela educação
intercultural pode favorecer o crescimento
da cultura pessoal dos indivíduos e a
mudança das estruturas e relações sociais
que impedem a construção de uma
sociedade mais justa e solidária.
A educação intercultural se configura
como uma pedagogia do encontro até
as suas últimas consequências,
visando promover uma experiência
profunda e complexa, em que o
encontro/confronto de narrações
diferentes configura uma ocasião de
crescimento para o sujeito, uma
experiência não superficial e
incomum de conflito/acolhimento.
(Fleuri, 2001, p. 53, grifos do autor).
De acordo com Nanni (1988, p. 51-
55 apud Fleuri, 2001, p. 54), para que a
educação intercultural consiga alcançar
seus objetivos no contexto escolar são
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
456
necessárias as seguintes mudanças nas
práticas educativas:
1. A realização do princípio da
igualdade de oportunidades: A
educação intercultural requer que se
trate nas instituições educativas os
grupos populares não como cidadãos
de segunda categoria, mas que se
reconheça seu papel ativo na
elaboração, escolha e atuação das
estratégias educativas. Além disso, é
preciso repensar as funções, os
conteúdos e os métodos da escola, de
modo a se superar o seu caráter
monocultural.
2. A reelaboração dos livros didáticos,
adoção de técnicas e de instrumentos
multimediais. A educação
intercultural requer profundas
transformações no modo de educar.
A prática educativa é estimulada a se
tornar sempre mais interdisciplinar e
multimediais. De modo particular,
dever-se-á utilizar as técnicas e as
metodologias ativas, do jogo à
dramatização. Mas principalmente os
livros didáticos deverão sofrer
profundas mudanças. Estes o
escritos geralmente na perspectiva da
cultura oficial e hegemônica, e não
para alunos pertencentes a “muitas
culturas”, diferentes entre si,
justamente no modo de interpretar
fatos, eventos, modelos de
comportamento, ideias, valores. E
talvez sejam usados justamente por
aqueles alunos cujas culturas são
representadas e julgadas, a partir da
cultura hegemônica, de modo
preconceituoso e discriminatório.
3. A formação e a requalificação dos
educadores são talvez o problema
decisivo, do qual depende o sucesso
ou o fracasso da proposta
intercultural. O que está em jogo na
formação dos educadores é a
superação da perspectiva
monocultural e etnocêntrica que
configura os modos tradicionais e
consolidados de educar, a
mentalidade pessoal, os modos de se
relacionar com os outros, de atuar nas
situações concretas.
No contexto educacional brasileiro, a
implementação dessas mudanças pode ser
vista como um grande desafio, uma vez
que o monoculturalismo prevalece nas
instituições de ensino e pesquisa. No
entanto, começam a surgir propostas
educacionais enraizadas nos movimentos
sociais que dialogam com a educação
intercultural, como a da Educação do
Campo, discutida a seguir.
A Educação do Campo e a formação de
educadores
Como apontado por Freitas (2011), a
Educação do Campo é fruto da luta de
movimentos sociais empreendida no Brasil
a partir da primeira metade do século XX,
período em que houve o início da
industrialização, da urbanização e do
consequente êxodo rural. Os agentes
sociais envolvidos na Educação do Campo
reivindicavam, além da reforma agrária, o
direito a uma educação pública de
qualidade no contexto rural brasileiro, que,
ainda hoje, é caracterizado por contrastes,
precariedade e desigualdades sociais e
educacionais. De um lado, um modelo
de desenvolvimento do campo que
privilegia os proprietários de grandes
extensões de terra, a monocultura e o
agronegócio voltado para a produção de
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
457
commodities (Caldart, 2009; Molina &
Freitas, 2011) e, do outro, uma proposta
contra-hegemônica de desenvolvimento
que favorece os pequenos proprietários de
terras, a agricultura familiar e, mais
recentemente, a agroecologia. Neste
modelo, a terra não é vista pelos sujeitos
do campo apenas como um espaço de
produção de alimentos, mas principalmente
como um espaço privilegiado de vida
comunitária e constituição identitária.
Desse modo, a realidade desses
sujeitos demanda uma proposta de
educação diferenciada da proposta das
escolas que atendem às populações dos
territórios urbanos. A proposta educacional
de escolas do campo requer uma
abordagem que privilegie metodologias
específicas, voltadas à diversidade
sociocultural e linguística dos estudantes
do campo. No que tange à pedagogia do
trabalho escolar, Molina e Freitas (2011)
defendem que a escola do campo deva
vincular os processos de ensino e
aprendizagem à realidade social dos seus
educandos. Essas vinculações, segundo as
pesquisadoras, abrem possibilidades para a
ressignificação do conhecimento científico,
o que pode levar os educandos a ter maior
autonomia e assumir uma postura mais
crítica no processo de construção de
conhecimento.
Além de contribuir com a construção
de autonomia dos educandos, essas
articulações propiciam a
internalização da criticidade
necessária à compreensão da
neutralidade científica, com a
localização da historicidade dos
diferentes conteúdos e dos contextos
sócio-históricos nos quais foram
produzidos. (Molina & Freitas, 2011,
p. 27).
No que se refere ao funcionamento
da escola do campo e ao perfil de professor
que nela atua, conforme Antunes-Rocha
(2009), exige-se uma organização do
tempo e espaço escolar articulada com a
dinâmica da vida no campo e um perfil
acadêmico distinto de professor. Este deve
ter uma formação acadêmica ampla e
diferenciada, que o capacite para trabalhar
de forma transdisciplinar, superando a
lógica de formação multidisciplinar
presente no modelo de formação docente
nas universidades brasileiras. Além disso, é
necessário que esse profissional esteja
habilitado para atuar em diferentes níveis
do ensino fundamental e do ensino médio e
em diferentes formas de organização
curricular. É muito comum, por exemplo, a
existência de escolas do campo que
trabalham em regime de alternância
iii
e
com turmas multisseriadas, nas quais o
professor trabalha conteúdos diversos com
alunos de diferentes anos escolares e
idades na mesma sala de aula. Ou seja, um
docente sem uma formação acadêmica
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
458
diferenciada por áreas de conhecimentos,
que o possibilite atuar de forma crítica e
inter/transdisciplinar nesse contexto ,
pode não dar conta de lidar com essa
realidade.
A proposta pedagógica das
licenciaturas de Educação do Campo
instituídas pelas políticas educacionais
brasileiras contrapondo-se à ideia
iluminista e colonialista de educação que
focaliza a transmissão do conhecimento
acadêmico, definido como “conhecimento
universal” objetiva articular, de forma
dialética, diferentes formas de produção de
conhecimento. Essa articulação visa à
transformação das realidades em que estão
inseridos os estudantes, seja a realidade de
suas comunidades de origem, seja a
realidade monocultural e monoepistêmica
das instituições em que participam ou que
futuramente participarão como educadores.
Em oposição à lógica da
monocultura do conhecimento científico,
Santos (2014) propõe a epistemologia da
ecologia dos saberes, a qual seria na
realidade uma proposta
contraepistemológica. O autor explica que
... a ecologia dos saberes é
basicamente uma
contraepistemologia. Isso implica
renunciar a qualquer epistemologia
geral. Em todo o mundo, não existem
somente formas muito diversas de
conhecimento da matéria, da
sociedade, da vida e do espírito, mas
também muitos e distintos conceitos
sobre o que é considerado
conhecimento e os critérios que
podem ser utilizados para validá-lo.
A este respeito, o que é válido para a
teoria é válido para a epistemologia
também. No período de transição em
que estamos entrando, em que ainda
prevalecem as versões abissais da
totalidade e da unidade do
conhecimento, precisamos
provavelmente de uma posição
epistemológica geral residual ou
negativa para avançarmos: uma
epistemologia geral da
impossibilidade de uma
epistemologia geral. (Santos, 2014, p.
192).
Ele ainda esclarece que, do ponto de
vista epistemológico, as sociedades
capitalistas são caracterizadas por
favorecer práticas nas quais o
conhecimento científico prevalece e a falta
dele pode ser considerada como um fator
desqualificador. Para o autor, esse “não
conhecimento” ou ignorância significa não
aprender ou ter acesso às descobertas e
definições científicas. Dessa forma,
conhecimentos diferentes dos científicos
são desvalorizados ou ignorados. Sabe-se,
ainda, que a difusão do conhecimento
científico não é uniforme socialmente, o
que implica ainda no favorecimento de
determinados grupos sociais e
desqualificação de outros. Entretanto, vale
apontar, isso não implica que se deva negar
o conhecimento científico, mas, nas
palavras de Santos (2014, p. 189), “usá-lo
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
459
em um contexto mais amplo de diálogo
com outros tipos de conhecimentos”.
Segundo o pesquisador, como todos
os tipos de conhecimentos são incompletos
(não dão conta de superar todas as
possíveis intervenções no mundo),
diálogos e debates entre eles devem ser
promovidos com o objetivo de superar
certo “não conhecimento”. Conforme
Santos (2014, p. 189),
Do ponto de vista da ecologia dos
saberes, os limites externos implicam
reconhecer intervenções alternativas
somente consideradas possíveis por
outros tipos de saberes. Uma das
características específicas do
conhecimento hegemônico é que elas
somente reconhecem limites internos.
O uso contra-hegemônico da ciência
moderna constitui uma exploração
paralela e simultânea dos seus limites
internos e externos.
Para superar a incompletude dos
conhecimentos, Santos (2014), assim como
Walsh (2010), defende abordagens
interculturais, pós-coloniais e
emancipatórias na educação que
permitiriam o reconhecimento da
pluralidade de sistemas de conhecimento e
uma possível articulação dialética entre
eles. O autor aponta que essas abordagens
seriam uma alternativa à ciência moderna
e, em oposição à visão de Walsh (2010),
segundo a qual a interculturalidade crítica
ainda é um projeto, afirma que elas já estão
presentes há certo tempo no mundo com
resultados férteis, especialmente no sul
global, onde a relação entre o
conhecimento hegemônico e o não
hegemônico tende a ser menos igualitária.
Vale salientar que essa
“epistemologia contraepistemológica”
defendida por Santos (2014) está em
consonância com a proposta de formação
de professores sob a perspectiva teórica da
Educação do Campo. Ambas questionam a
hegemonia do conhecimento científico e
privilegiam o diálogo intercultural na
construção dos saberes em espaços
educacionais. Conforme Sant’Anna e
Marques (2015, p. 732),
Os projetos de formação de
educadores do campo devem,
portanto, oportunizar espaços
formativos que extrapolem os muros
das universidades, que levem o
discente a interagir com a diversidade
do campo, com os seus saberes e
formas de construção e apropriação
do conhecimento.
Políticas educacionais brasileiras para o
desenvolvimento da Educação do
Campo
Nesta seção, políticas e programas
educacionais lançados pelo governo
federal brasileiro são apresentados e
discutidos, com o objetivo de
contextualizar o curso de Licenciatura em
Educação do Campo, cuja proposta
pedagógica é o objeto de análise deste
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
460
estudo. Para isso, foram selecionadas
algumas dessas ações governamentais para
discussão, tendo em vista os objetivos
deste estudo. Entretanto, é importante
destacar que outros marcos legais
importantes na Educação do Campo e o
caminho percorrido pelos movimentos
sociais e sindicais do campo até chegar a
essas conquistas tem sido árduo e longo.
No final dos anos 1990 e início dos
anos 2000, surgiram propostas do governo
federal, impulsionadas principalmente por
movimentos sociais, sindicatos de
trabalhadores rurais e universidades
públicas de ensino superior, visando
combater as grandes desigualdades sociais
e educacionais no meio rural. Molina,
Montenegro e Oliveira (2009, p. 175),
baseando-se em dados do IBGE PNAD
de 2004-2007, apontam números
relacionados a essas desigualdades:
A taxa de analfabetismo da
população de 15 anos ou mais, que
apresenta um patamar de 23,3% na
área rural, é mais de três vezes
superior àquela da zona urbana, que
se encontra em 7,6%. A escolaridade
média da população de 15 anos ou
mais, que vive na zona rural é de 4,5
anos, enquanto no meio urbano, na
mesma faixa etária, encontra-se em
7,8 anos. Ocorrem significativas
diferenças em relação à escolaridade
média das populações rural e urbana
entre as regiões brasileiras, ficando o
território do campo em desvantagem
em todas elas.
Entre as propostas voltadas para o
combate às desigualdades sociais e
educacionais no campo, destaca-se o
Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária (Pronera). Conforme o
Manual de Operações do Pronera (2016), o
programa, criado em 1998, tornou-se uma
política pública de Educação do Campo
por meio do Decreto 7.352, de 4 de
novembro de 2010, com o objetivo de
propor e apoiar projetos de educação
voltados para o desenvolvimento das áreas
de assentamento da reforma agrária. Além
de possibilitar a oferta de cursos de
educação básica (alfabetização, ensinos
fundamental e médio), ensino técnico
profissionalizante de nível médio, cursos
superiores e de especialização, o Pronera
desenvolve projetos para formar e
capacitar educadores para atuar nesses
espaços como multiplicadores e
organizadores de atividades educativas
comunitárias.
Cabe salientar que o Decreto
7.352/2010 é considerado um dos marcos
legais mais importantes da Educação do
Campo no Brasil. Por meio desse decreto,
é instituída a política de Educação do
Campo no país. No documento, os artigos
e definem os sujeitos do campo e as
escolas do campo, conceitos fundantes na
Educação do Campo.
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
461
I populações do campo: os
agricultores familiares, os
extrativistas, os pescadores
artesanais, os ribeirinhos, os
assentados e acampados da reforma
agrária, os trabalhadores assalariados
rurais, os quilombolas, os caiçaras, os
povos da floresta, os caboclos e
outros que produzam suas condições
materiais de existência a partir do
trabalho no meio rural; e II escola
do campo: aquela situada em área
rural, conforme definida pela
Fundação Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística IBGE, ou
aquela situada em área urbana, desde
que atenda predominantemente a
populações do campo.
Conforme Molina e Freitas (2011),
outro programa de educação conquistado
por meio das lutas dos movimentos sociais
e sindicais do campo foi o Programa de
Apoio à Formação Superior em
Licenciatura em Educação do Campo
(Procampo), instituído pela Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão (Secadi) do
Ministério da Educação (MEC).
Estabelecido por meio do Edital de
Convocação nº 9, de 29 de abril de 2009, o
programa convocou as universidades
públicas para ofertar cursos de
Licenciatura em Educação do Campo com
habilitação em, no mínimo, duas das áreas
de conhecimento previstas para a docência
multidisciplinar, a saber: Linguagens e
Códigos, Ciências Humanas e Sociais,
Ciências da Natureza, Matemática e
Ciências Agrárias. Como indicado no
programa, essas licenciaturas
interdisciplinares tinham como objetivo
formar educadores para atuar nos anos
finais do ensino fundamental e no ensino
médio em escolas do campo.
Apesar de serem considerados um
grande avanço nas políticas de formação
de educadores do campo, esses cursos,
viabilizados por meio deste edital,
apresentavam limitações em relação ao
atendimento da grande demanda de
formação de professores para atuar no
campo. Molina e Antunes-Rocha (2014)
explicam que dentre as limitações estava o
fato de esses cursos não terem a garantia
de continuidade nas instituições de ensino
superior, uma vez que o edital previa a
abertura de turmas específicas por projeto.
Ou seja, finalizando o projeto, extinguia-se
o curso. Entretanto, segundo as autoras,
devido à pressão do Movimento da
Educação do Campo, a correção da oferta
única de curso foi feita por meio da
publicação do Edital
SESU/SETEC/SECADI 2/2012,
convocando as universidades a tornar os
cursos de Licenciatura em Educação do
Campo perenes nessas instituições.
Essa medida visou não só corrigir a
oferta única, característica dos editais
anteriores, mas principalmente dar
institucionalidade e permanência a esta
proposta de formação de educadores.
Uma das principais conquistas do
Movimento da Educação do Campo,
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
462
nesta perspectiva de permanência, foi a
conquista de 600 vagas de concurso
docente no âmbito da educação
superior para a oferta destas
Licenciaturas. (Molina & Antunes-
Rocha, 2014, p. 240).
Em 2013, para assegurar as ações
políticas de melhoria da Educação do
Campo e, consequentemente, da formação
de professores para atuar no contexto rural,
foi instituído o Programa Nacional de
Educação do Campo (Pronacampo) por
meio da Portaria 86, de de fevereiro
de 2013. O documento estabelece em seu
artigo que o programa “consiste em um
conjunto articulado de ações de apoio aos
sistemas de ensino para a implementação
da política de Educação do Campo,
conforme disposto no Decreto 7.352, de
4 de novembro de 2010”.
Uma das licenciaturas em Educação
do Campo instituídas no Brasil por meio
dessas políticas públicas do governo
federal é a da Universidade Federal dos
Vales do Jequitinhonha e Mucuri
UFVJM, localizada no estado de Minas
Gerais, cuja proposta pedagógica será
discutida a seguir.
A Licenciatura em Educação do Campo
da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri LEC-UFVJM
e sua proposta pedagógica
Segundo o Projeto Político-
Pedagógico da Licenciatura em Educação
do Campo LEC da Universidade Federal
dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
(2014), essa graduação foi instituída em
2013 para atender a demanda do Edital
SESU/SETEC/SECADI 2/2012,
apontado anteriormente. Como discutido,
esse edital faz parte das políticas públicas
do governo federal, materializadas por
meio de resoluções e programas nacionais,
visando subsidiar técnica e
financeiramente os estados, o Distrito
Federal e os municípios brasileiros na
instituição de uma política nacional de
Educação do Campo.
A LEC está inserida na UFVJM, cuja
fundação teve por objetivo atender a
demanda por instituições de nível superior
de uma vasta região que abrange o norte e
nordeste do estado de Minas Gerais, uma
vez que a maioria das instituições federais
de ensino superior mineiras está localizada
mais ao sul do estado. Conforme o Plano
de Desenvolvimento Institucional da
UFVJM (2012), a universidade foi criada
com a transformação da Faculdade de
Odontologia de Diamantina, fundada em
30 de setembro de 1953 por Juscelino
Kubitschek de Oliveira, governador do
estado naquele ano, em universidade
federal, por meio da Lei 11.173 de 6 de
setembro de 2005, publicada no Diário
Oficial da União em 8 de setembro de
2005.
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
463
Estima-se que mais de dois terços da
população do Vale do Jequitinhonha,
região na qual a sede da universidade está
localizada, vive no meio rural, segundo o
Portal Polo do Jequitinhonha (2017). Essa
região, situada ao nordeste de Minas
Gerais, juntamente com a do Vale do
Mucuri, é exemplo de disparidades
regionais no estado, apresentando os mais
baixos índices de renda domiciliar per
capita média e IDH-M dentre as regiões
mineiras (PDI UFVJM, 2012, p. 23), o
que pode ser considerado um fator que
justifica a implantação da LEC na UFVJM.
O objetivo geral do curso é a
formação crítica e contextualizada de
professores, voltada à transformação
política e social do meio rural e de suas
escolas. Com duração de 4 anos, a LEC-
UFVJM visa formar professores com
habilitação em Ciências da Natureza ou
Linguagens e Códigos para atuar nos anos
finais do ensino fundamental e no ensino
médio de escolas do campo. Uma de suas
características principais e a qual o
diferencia dos demais é a sua matriz
curricular inter/transdisciplinar, a qual
apresenta componentes curriculares
iv
em
áreas distintas do conhecimento que se
articulam de forma orgânica para discutir
temas transversais relacionados à
Educação do Campo. Estes perpassam os
oito módulos do curso. Entre os temas
transversais, destacam-se os seguintes:
territórios e comunidades do campo,
sujeitos do campo, o educador no contexto
do campo e a relação entre saberes. A
função desses temas é articular os
conhecimentos produzidos no Tempo
Universidade e no Tempo Comunidade
para a elaboração semestral do Relatório
de Tempo Comunidade
v
, o qual é orientado
pelos professores formadores do curso.
Além da produção desse trabalho, outra
característica da matriz curricular da LEC-
UFVJM que se opõe à fragmentação do
conhecimento e fortalece a dimensão
interdisciplinar do curso é a presença de
componentes curriculares que podem ser
ministrados por dois ou mais professores
de diferentes áreas do conhecimento.
Nesse contexto, tão importante
quanto a atuação em sala de aula, é a
construção coletiva do planejamento
das disciplinas, a organização das
atividades didáticas de forma
integrada, os processos avaliativos
colegiados, a produção de material
didático por áreas de conhecimento e
por temas geradores, a revisão crítica
de práticas educativas, enfim, um
conjunto de ações indispensáveis
para a construção de uma perspectiva
formativa não fragmentada (PPP-
LEC, 2014, p. 22).
Conforme o Projeto Político-
Pedagógico da LEC (2014, p. 30-31), com
o intuito de garantir aos educandos um
processo formativo amplo, o curso se
articula em três eixos:
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
464
1. O eixo de formação básica que
objetiva oferecer uma perspectiva
humanista e crítica. Nesse eixo, os
componentes curriculares são da
área de ciências humanas, sendo
cursados pelos alunos das duas
habilitações.
2. O eixo de formação específica que
objetiva oferecer a formação em
uma área de conhecimento
específico relacionada à
habilitação escolhida, ou seja,
Linguagens e Códigos ou Ciências
da Natureza.
3. O eixo das práticas integradoras
que objetiva integrar os conteúdos
trabalhados e contextualizá-los na
realidade educacional e
comunitária do campo por meio do
Relatório do Tempo Comunidade,
dos Estágios Supervisionados, das
Práticas de Ensino e das AACC.
Nos três primeiros módulos, os
alunos cursam componentes curriculares
na área de Ciências Humanas e nos
seguintes os componentes curriculares da
área de formação específica escolhida:
Ciências da Natureza ou Linguagens e
Códigos. Os alunos egressos que optaram
pela primeira são licenciados para atuar
como professores de ciências nos anos
finais do ensino fundamental e de Química,
Física e Biologia no ensino médio e
aqueles que optaram pela segunda são
licenciados para atuar como professores de
Português, Literatura e Inglês.
Para favorecer uma trajetória
formativa voltada à criticidade e ao
contexto no qual os alunos irão atuar como
futuros professores, propõe-se o regime de
alternância de períodos educativos na
universidade, chamados de Tempos
Universidade, e nas regiões onde estão
localizadas as comunidades de origem dos
estudantes, chamados de Tempos
Comunidade. Essas alternâncias de tempos
e espaços, semelhantes às alternâncias das
Escolas Famílias Agrícolas (EFA)
vi
,
podem ser vistas como uma alternativa
metodológica que dialoga com a proposta
de educação intercultural, defendida por
Santos (2014) e Walsh (2010). Assim, as
alternâncias podem ser consideradas como
tempos e espaços concretos de “trocas
epistemológicas”, nos quais os saberes
científicos e os das comunidades de origem
dos alunos são confrontados de forma
dialética com o objetivo de construir novos
saberes.
O Tempo Universidade ocorre em
dois períodos de cinco semanas nos meses
de janeiro/fevereiro e junho/julho na sede
da UFVJM em Diamantina. Nesses
períodos, além do trabalho com conteúdos
específicos em sala de aula, os alunos
participam de pesquisas de campo,
atividades culturais, seminários, encontros
com representantes de movimentos sociais
etc. O Tempo Comunidade, por sua vez, é
realizado de fevereiro a maio e de agosto a
novembro nas regiões de origem dos
estudantes, chamadas de polos de
alternância. Nesses momentos,
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
465
contextualizam-se os conteúdos
trabalhados nos componentes curriculares
de Tempo Universidade, executam-se
trabalhos de campo de natureza
etnográfica, visando desenvolver projetos
de intervenção em comunidades
campesinas, elabora-se o Relatório do
Tempo Comunidade e realizam-se as
atividades previstas nas Práticas de Ensino
e nos Estágios Supervisionados, integrando
assim a pesquisa, o ensino e a extensão.
A alternância dos tempos e espaços,
por meio do diálogo com a realidade
sociocultural do campo, coloca o
conhecimento científico em uma nova
perspectiva, enraizada nos saberes e nas
práticas locais. Entretanto, vale ressaltar
que o Tempo Universidade e o Tempo
Comunidade não são dois momentos
distintos, mas sim complementares. Eles
são planejados para que a construção dos
conhecimentos necessários ao educador do
campo ocorra tanto no contexto
universitário quanto em suas comunidades.
Sobre a proposta metodológica das
Licenciaturas em Educação do Campo,
centrada na alternância de tempos e
espaços, Molina e Freitas (2011, p. 28)
esclarecem que
Ao organizar metodologicamente o
currículo por alternância entre
tempo-escola e tempo-comunidade, a
proposta curricular da licenciatura
objetiva integrar a atuação dos
sujeitos educandos na construção do
conhecimento necessário à sua
formação de educadores, não apenas
nos espaços formativos escolares,
como também nos tempos de
produção de vida nas comunidades
onde se encontram as escolas do
campo.
Além da alternância de tempos e
espaços, outra estratégia do curso para
promover uma formação de educadores do
campo contextualizada e baseada na
proposta de valorização da identidade
campesina é o Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência para a
Diversidade (Pibid Diversidade). Criado
em 2010 com o lançamento do edital
002/2010/CAPES/SECAD-MEC Pibid
Diversidade pela Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (Capes), o programa tem como
objetivo atender as licenciaturas
interculturais indígenas e do campo,
propiciando “... um processo formativo que
leve em consideração as diferenças
culturais, a interculturalidade do país e
suas implicações no trabalho pedagógico”
(Portal CAPES, 2013).
Em andamento desde novembro de
2011, o Pibid Diversidade da UFVJM
vii
conta com uma equipe formada por
professores formadores e alunos da LEC-
UFVJM e professores de escolas do campo
na região de abrangência da universidade.
Seu objetivo central é “contribuir para a
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
466
formação inicial e continuada de
educadores do campo, habilitando-os, a
partir da leitura crítica da realidade do
campo, a desenvolver uma prática
pedagógica contextualizada e
transformadora” (Sant’Anna & Marques,
2015, p. 732). Mediante o
desenvolvimento de ações pedagógicas nas
escolas e da mobilização das comunidades
campesinas em torno de ações
interventivas, o programa promove uma
formação docente diferenciada e
contextualizada, dialogando com a
perspectiva de educação intercultural
discutida neste trabalho.
Desse modo, a articulação entre
universidade e comunidades do campo,
propiciada tanto pela alternância de tempos
e espaços formativos da LEC-UFVJM
como pelo Pibid Diversidade, pode ser
vista como uma proposta para o
desenvolvimento de competências
interculturais entre os professores do
campo em formação e em serviço.
Segundo Guilherme e Dietz (2015, p. 9),
as competências interculturais não
podem e não devem ser reduzidas a
meras ‘receitas’ de comportamento
adequado em certos contextos
interculturais (Guilherme, 2013). Em
segundo lugar, as competências
identificadas como interculturais não
podem e não devem ser
substancializadas e delimitadas em
contraste com as competências
intraculturais; ao invés, essas
disposições relacional e
contextualmente articuladas devem
ser concebidas como um tipo
particular de habitus profissional a
ser adquirido, treinado e
desenvolvido por professores,
assistentes sociais, e outros
‘mediadores interculturais’.
No que tange à educação
intercultural, Guillherme e Dietz (2015)
argumentam que as instituições de
educação superior têm responsabilidade
social em promover responsabilidade
epistêmica e social por meio da sua
cooperação em parceria com comunidades
periféricas em atividades de pesquisa e em
projetos de intervenção locais, nacionais
ou internacionais. Citam como exemplo
dessas ações projetos internacionais de
cooperação intercultural nos quais
participaram como o Inter-University
Framework Program for Equity and Social
Cohesion Policies in Higher Educaction,
desenvolvido em 30 universidades, sendo
22 da América Latina, e o projeto
InterSaberes, desenvolvido em parceria
com a universidade intercultural de
Veracruz no México, em regiões indígenas
desse país. Nesses projetos, Guilherme e
Dietz (2015, p. 13), além de
desenvolverem pesquisas etnográficas em
pequenas comunidades, promoveram
treinamentos e workshops com o objetivo
de encontrar “uma maneira adequada de
lidar tanto pedagogicamente quando
politicamente com diferentes fontes de
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
467
diversidade não étnica e cultural, mas
também de gênero, orientação sexual e
religiosa”.
Um dos princípios da educação
intercultural sugeridos por Nanni (1988, p.
51-55 apud Fleuri, 2001, p. 54) que pode
ser entrevisto no projeto pedagógico da
LEC-UFVJM é o da igualdade de
oportunidades. Este, vale lembrar, prevê a
participação ativa de grupos populares na
elaboração e seleção dos conteúdos
escolares e estratégias educativas. No
curso, o Conselho Consultivo, um dos seus
órgãos gestores, é constituído por
representantes de movimentos sociais,
egressos do PROCAMPO e/ou LEC e
discentes e docentes da UFVJM
envolvidos com a Educação do Campo.
Tem como função principal articular a
proposta do curso com os movimentos
sociais na discussão do projeto político-
pedagógico e de políticas voltadas à
Educação do Campo, o que faz com esses
sujeitos tenham voz ativa na gestão
pedagógica do curso.
Outra característica da LEC-UFVJM
que fortalece o princípio da igualdade de
oportunidades é a participação frequente de
representantes de movimentos sociais do
campo em palestras, conferências e
encontros promovidos nos Tempos
Universidade e Comunidade. Essa
participação indica o diálogo entre a
proposta do curso de formação de
professores e a perspectiva de educação
intercultural discutida neste trabalho.
No que tange à adequação de
material didático e à adoção de práticas
educativas interculturais visando superar o
monoculturalismo do conhecimento
científico, destacam-se as seguintes ações
promovidas pelo curso:
1. A realização de ações interventivas nas
escolas e nas comunidades do campo
via projetos de pesquisa, ensino e
extensão.
2. A elaboração do relatório de Tempo
Comunidade, ressignificando a forma
de produção de conhecimento no
contexto acadêmico.
3. A produção de folders, almanaques,
programas de rádio, cartilhas e outros
materiais didático-pedagógicos,
valorizando aspectos da identidade e
da cultura dos sujeitos do campo.
4. A realização de místicas
viii
no processo
formativo dos estudantes.
5. A realização de saraus durante o
Tempo Universidade, com a
apresentação de peças, números
musicais, poesias, danças etc. sobre a
temática da vida no campo.
Entre os desafios enfrentados pelo
curso encontra-se o de formar os próprios
professores formadores para atuar na
educação dos professores do campo, uma
vez que a maioria dos professores
formadores, além de ter trajetórias de
formação distintas das perspectivas
teóricas discutidas neste trabalho, não tinha
experiência docente em cursos de
formação de educadores do campo
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
468
anteriormente. Assim, uma das estratégias
adotadas pelo curso para lidar com esse
desafio é o trabalho coletivo em sua gestão
pedagógica, o qual inclui desde a discussão
sistemática e atualização do seu projeto
político-pedagógico até o planejamento, a
organização e avaliação das atividades
didático-pedagógicas do curso.
Considerações finais
Neste trabalho, foi apresentada e
discutida a proposta pedagógica de um
curso de formação de professores do
campo de uma universidade federal
brasileira, o qual tem como objetivo formar
professores com habilitação em Ciências
da Natureza ou Linguagens e Códigos para
atuar nos anos finais do ensino
fundamental e no ensino médio de escolas
do campo. Para nortear essa reflexão,
foram utilizados estudos sobre a ecologia
dos saberes de Santos (2014),
interculturalidade e Educação do Campo.
Para contextualizar a implantação do
curso em questão, a LEC-UFVJM, um
panorama histórico do Movimento da
Educação do Campo no Brasil foi
apresentado, o qual originou políticas e
programas do governo federal para o
desenvolvimento da educação no contexto
rural brasileiro. Entre esses programas,
foram destacados neste trabalho o
Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária (Pronera), o Programa de
Apoio à Formação Superior em
Licenciatura em Educação do Campo
(Procampo) e o Programa Nacional de
Educação do Campo (Pronacampo).
Em seguida, o projeto pedagógico do
curso foi descrito e analisado. Foram
salientados nessa proposta o seu caráter
inter/transdisciplinar, o regime de
alternância e o Pibid Diversidade, os quais
propiciam “trocas epistemológicas”,
permitindo que os saberes científicos e os
das comunidades de origem dos alunos se
articulem de forma dialética,
ressignificando as formas de produção de
conhecimento no contexto acadêmico.
Foram também apresentadas atividades
pedagógicas do curso que fortalecem os
princípios da educação intercultural
defendidos por Nanni (1988, p. 51-55 apud
Fleuri, 2001), tais como o princípio da
igualdade de oportunidades e o da
adequação de práticas pedagógicas e de
material didático.
Por fim, são apontados desafios que
permeiam a formação de professores do
campo no Brasil, relacionados à discussão
sobre educação intercultural, a saber: como
assegurar que propostas de educação
intercultural emergentes como as da LEC-
UFVJM sobrevivam em um contexto de
crescente exclusão social e instabilidade
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
469
política no mundo contemporâneo? Como
trabalhar a questão da interculturalidade
em um modelo de universidade que ainda
privilegia a formalização, a padronização e
a hierarquização do conhecimento? Como
ressignificar o papel e as práticas didático-
pedagógicas de professores formadores
que atuam nessas instituições nas quais
prevalece o conhecimento hegemônico da
ciência moderna? Essas questões precisam
ser discutidas e problematizadas à luz de
epistemologias pluralistas, emancipadoras
e contra-hegemônicas.
Referências
Antunes-Rocha, M. I. (2011). Licenciatura
em Educação do Campo: histórico e
projeto politico pedagógico. In Antunes-
Rocha, M. I., & Martins, A. A. (Orgs.).
Educação do Campo: desafios para a
formação de professores (pp. 39-55). Belo
Horizonte, MG: Autêntica Editora.
Caldart, R. S. (2009). Educação do Campo:
Notas para uma Análise de Percurso. Trab.
Educ. Saúde, 7(1), 35-64. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/S1981-
77462009000100003.
Carvalho, A. F.; Gois, C. B., & Soares, M.
J. (2011). A mística: um saber pedagógico
desenvolvido no campo do estágio em
assentamentos. Anais do V Colóquio
Internacional Educação e
Contemporaneidade. Recuperado de:
http://educonse.com.br/2011/cdroom/eixo
%202/PDF/Microsoft%20Word%20-
%20A%20M%CDSTICA%20UM%20SA
BER%20PEDAG%D3GICO%20DESENV
OLVIDO%20NO%20CAMPO%20DO%2
0EST%C1GIO%20EM%20ASSENTAME
NTOS.pdf
Cordeiro, G. N. K., Reis, N. S., & Hage, S.
M. (2011). Pedagogia da Alternância e
seus desafios para assegurar a formação
humana dos sujeitos e a sustentabilidade
do campo. Em Aberto, 24(85), 115-125.
Decreto n. 7.352, de 4 de novembro de
2010. (2010, 4 de novembro). Dispõe sobre
a Política de Educação do Campo e o
Programa Nacional de Educação na
Reforma Agrária - PRONERA.
Recuperado de:
http://portal.mec.gov.br/docman/marco-
2012-pdf/10199-8-decreto-7352-de4-de-
novembro-de-2010/file
Edital de Convocação n. 9, de 29 de abril
de 2009 (2009, 29 de abril). Convoca as
Instituições Públicas de Educação Superior
IES públicas para apresentarem
projetos de Cursos de Licenciatura em
Educação do Campo para a formação de
professores da educação básica nas escolas
situadas nas áreas rurais. Recuperado de:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/edit
al_procampo_20092.pdf
Edital de Seleção
SESU/SETEC/SECADI n. 2, de 31 de
agosto de 2012 (2012, 31 de agosto).
Chamada Pública para seleção de
Instituições Federais de Educação Superior
IFES e de Institutos Federais de
Educação, Ciência e Tecnologia IFET,
para criação de cursos de Licenciatura em
Educação do Campo, na modalidade
presencial. Recuperado de:
http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/
edital_%2002_31082012.pdf
Estermann, J. (2010). Interculturalidad:
Vivir la Diversidad. La Paz: Instituto
Superior Ecumênico Andino de Teologia.
Fleuri, R. M. (2001). Desafios à educação
intercultural no Brasil. Educação,
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
470
Sociedade & Cultura, 45-62. Recuperado
de:
http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC1
6/16-2.pdf
Freitas, H. C. de A. (2011). Rumos da
Educação do Campo. Em Aberto, 24(85),
p. 35-49.
Guilherme, M., & Dietz, G. (2015).
Difference in Diversity: Multiple
perspectives on multi-, inter-, and trans-
cultural conceptual complexities. Journal
of Multicultural Discourses, 10(1), 1-21.
DOI:http://dx.doi.org/10.1080/17447143.2
015.1015539
Manual de Operações do Programa
Nacional de Educação na Reforma
Agrária. (2016). Recuperado
de:
http://www.incra.gov.br/sites/default/files/
uploads/reforma-agraria/projetos-e-
programas/pronera/manual_pronera_-
_18.01.16.pdf
Molina, M. C., Montenegro, J. L. A., &
Oliveira, L. L. N. A. (2009). Das
Desigualdades aos Direitos: a Exigência de
Políticas Afirmativas para a Promoção da
Equidade Educacional no Campo. Raízes,
29(1), 174190.
Molina, M. C., & Freitas, H. C. de A.
(2011). Avanços e Desafios na Construção
da Educação do Campo. Em Aberto,
24(85), p. 17-31.
Molina, M. C., & Antunes-Rocha, M. I.
(2014). Educação do Campo, História,
Práticas e Desafios no Âmbito das
Políticas de Formação de Educadores:
Reflexões sobre o Pronera e o Procampo.
Revista Reflexão e Ação, 22(2), 220-253.
DOI: http://dx.doi.org/10.17058/rea.v22i2.
5252.
Plano de Desenvolvimento Institucional da
Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri PDI 2012-2016.
(2012). Recuperado de:
http://www.ufvjm.edu.br/universidade/insti
tucional.html?lang=pt_BR.utf8%2C+pt_B
R.UT
Portal CAPES. Pibid Diversidade. (2013, 6
de setembro). Recuperado de:
http://www.capes.gov.br/educacao-
basica/capespibid/pibid-diversidade
Portal Polo Jequitinhonha. UFMG. (2017,
4 de abril). Recuperado de:
https://www2.ufmg.br/polojequitinhonha/
O-Vale/Sobre-o-Vale
Portaria 86, de 1 de fevereiro de 2013.
(2013, 1 de fevereiro). Institui o Programa
Nacional de Educação do Campo
PRONACAMPO e define suas diretrizes
gerais. Recuperado de:
http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/
port_86_01022013.pdf
Projeto Político Pedagógico da
Licenciatura em Educação do Campo da
Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri. (2014).
Recuperado de:
http://site.ufvjm.edu.br/lec/projeto-
pedagogico/
Sant’Anna, P.A.; & Marques, L.O.C.
(2015). Pibid Diversidade e a Formação de
Educadores do Campo. Educação &
Realidade, 40(3), 651-961. DOI:
http://dx.doi.org/10.1590/2175-623645795
Santos, B. S. (2014). Ecologies of
Knowledges. In ______, Epistemologies of
the South: Justice against Epistemicide
(pp.188-211). Boulder, Colo: Paradigm
Publishers.
Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização, Diversidade e Inclusão:
Apresentação. (s/d). Recuperado de:
http://portal.mec.gov.br/secretaria-de-
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na formação de professores do campo: análise de uma experiência...
Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis
p. 447-471
jul../dez.
2017
ISSN: 2525-4863
471
educacao-continuada-alfabetizacao-
diversidade-e-inclusao/apresentacao
UNESCO (2006). UNESCO Guidelines on
Intercultural Education. Paris: UNESCO.
Recuperado de:
http://unesdoc.unesco.org/images/0014/00
1478/147878e.pdf
Walsh, C. (2009). Interculturalidad,
Estado, Sociedad: Luchas (de)coloniales
de Nuestra Época. Quito: Universidad
Andina Simón Bolivar, Ediciones Abya-
Yala.
_________. (2010). Interculturalidad
crítica y educación intercultural. In Viaña,
J., Tapia, L., & Walsh, C. (Eds.),
Construyendo Interculturalidad Crítica
(pp. 75-96). La Paz: Instituto Internacional
de Integración.
i
Todas as citações de obras estrangeiras foram
traduzidas para o português pelo autor deste
trabalho.
ii
Walsh (2009, p. 15) utiliza o termo “de-colonial”,
suprimindo o “s” de “descolonial” para marcar uma
distinção com o significado dessa palavra em
espanhol. Segundo a autora, pretende-se com o
“de-colonial” provocar um posicionamento
contínuo de transgressão, intervenção e insurgência.
iii
Conforme Cordeiro et al. (2011, p. 116), a
Pedagogia da Alternância é uma proposta
pedagógica e metodológica capaz de atender as
necessidades da articulação entre escolarização e
trabalho, propiciando a esses indivíduos o acesso à
escola sem que tenham que deixar de trabalhar”.
iv
No projeto político pedagógico do curso em
questão, utiliza-se com mais frequência o termo
“componente curricular” ao invés de “disciplina”.
v
Na nova versão do Projeto Político Pedagógico de
2017, ainda a ser aprovada pelos órgãos superiores
da UFVJM, o Relatório de Tempo Comunidade
passou a ser chamado de Trabalho Interdisciplinar
do Tempo Comunidade.
vi
As EFAs (Escolas Famílias Agrícolas) são
escolas de ensino profissionalizante, financiadas
por entidades públicas e privadas, voltadas para
jovens do meio rural. Nessas escolas, os alunos
estudam em regime de alternância.
vii
Inicialmente, o Pibid Diversidade da UFVJM foi
gerido por professores formadores que atuavam no
Procampo, iniciado em 2010. Quando o Pibid
Diversidade foi instituído na universidade em 2011,
a LEC ainda não havia sido implantada.
viii
Conforme Carvalho, Gois e Soares (2011), as
místicas fazem parte da história do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST). São encenações,
em formato de peças teatrais, que mostram
momentos marcantes da luta dos sujeitos do campo
em prol dos seus direitos. Na LEC-UFVJM, as
místicas são geralmente apresentadas no início de
práticas educativas como “um aquecimento” ou no
final como uma reflexão sobre o processo de
aprendizagem.
Recebido em: 25/02/2017
Aprovado em: 27/06/2017
Publicado em: 31/07/ 2017
Como citar este artigo / How to cite this article /
Como citar este artículo:
APA:
Marques, L. O. C. (2017). Interculturalidade na
formação de professores do campo: análise de uma
experiência. Rev. Bras. Educ. Camp., 2(2), 447-471.
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2017v2n2p447
ABNT:
MARQUES, L. O. C. Interculturalidade na formação
de professores do campo: análise de uma experiência.
Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 2, n. 2,
p. 447-471, 2017. DOI:
http://dx.doi.org/10.20873/uft.2525-
4863.2017v2n2p447
ORCID
Luiz Otávio Costa Marques
http://orcid.org/0000-0001-7139-3137