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Saberes a serem tratados na escola com turmas
multisseriadas: reflexões outras a partir das expectativas
da comunidade campesina
Isaias da Silva1, Janssen Felipe da Silva2
1, 2 Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Centro Acadêmico do Agreste (CAA). Programa de Pós-Graduação em
Educação Contemporânea (PPGEduC). Avenida Marielle Franco, s/n - Km 59. Bairro Nova Caruaru. Caruaru - PE. Brasil.
Autor para correspondência/Author for correspondence: isaiassilva-@hotmail.com
RESUMO. Este artigo apresenta uma interlocução entre escola
com turmas multisseriadas e saberes campesinos. Assim, esse
estudo tem como objetivo identificar e caracterizar os saberes a
serem tratados na escola com turmas multisseriadas a partir das
narrativas da comunidade campesina. A lente teórica utilizada
fundamenta-se nos Estudos Pós-Coloniais. Metodologicamente
este estudo constitui-se a partir das narrativas realizadas com
moradores(as) campesinos(as) do Engenho Galileia, localizado
no município de Vitória de Santo Antão-PE. As análises
evidenciam que a comunidade campesina tem muito a dizer
sobre os saberes que podem/poderiam fazer parte das práticas
pedagógicas e curriculares da escola com turmas multisseriadas
do campo, contribuindo assim na construção de uma instituição
no viés decolonial, ao reconhecer os saberes próprios da
comunidade em suas práticas pedagógicas.
Palavras-chave: educação do campo, escola com turmas
multisseriadas, saberes campesinos, estudos pós-coloniais.
Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e14312
Silva, I., & Silva, J. F. (2023). Saberes a serem tratados na escola com turmas multisseriadas: reflexões outras a partir das expectativas da comunidade campesina...
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Knowledge to be treated in school with multi-seriated
classes: other reflections from the expectations of the
peasant community
ABSTRACT. This article presents an interlocution between
school with multigrade classes and peasant knowledge. Thus,
this study aims to identify and characterize the knowledge to be
treated at school with multigrade classes based on the narratives
of the peasant community. The theoretical lens used is based on
Postcolonial Studies. Methodologically, this study is based on
narratives carried out with peasant residents of Engenho
Galileia, located in the municipality of Vitória de Santo Antão-
PE. The analyzes show that the peasant community has a lot to
say about the knowledge that can/could be part of the school's
pedagogical and curricular practices with multi-grade classes
from the countryside, thus contributing to the construction of an
institution in the decolonial bias, by recognizing the specific
knowledge of the community in their pedagogical practices.
Keywords: rural education, school with multigrade classes,
peasant knowledge, post-colonial studies.
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Saberes a tratar en la escuela con clases multiseriadas:
otras reflexiones desde las expectativas de la comunidad
campesina
RESUMEN. Este artículo presenta una interlocución entre la
escuela con clases multigrado y el saber campesino. Así, este
estudio tiene como objetivo identificar y caracterizar los saberes
a tratar en la escuela con clases multigrado a partir de las
narrativas de la comunidad campesina. El lente teórico utilizado
se basa en los Estudios Postcoloniales. Metodológicamente, este
estudio se basa en narrativas realizadas con campesinos
residentes de Engenho Galileia, ubicado en el municipio de
Vitória de Santo Antão-PE. Los análisis muestran que la
comunidad campesina tiene mucho que decir sobre los saberes
que pueden/podrían ser parte de las prácticas pedagógicas y
curriculares de la escuela con clases multigrados del campo,
contribuyendo así a la construcción de una institución en el
sesgo decolonial, al reconocer los saberes específicos de la
comunidad en sus prácticas pedagógicas.
Palabras clave: educación rural, escuela con clases multigrado,
saberes campesinos, estudios poscoloniales.
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Introdução
A escola de meus sonhos
É aquela que respeita a existência, faz renascer o brilho da esperança.
A escola de meus sonhos
É aquela que conecta sujeitos e expectativas.
A escola de meus sonhos
É aquela que faz sentirmos prazer de chegar e ocupar o latifúndio do SABER.
(Adilson de Apiaim)
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Este artigo constitui-se através de estudos realizados no contexto da dissertação em
Educação Contemporânea, vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Educação
Contemporânea-PPGEduC/UFPE/CAA, que tencionaram refletir sobre as expectativas da
comunidade campesina sobre a escola com turmas multisseriadas. Nessa direção,
evidenciamos no contexto de suas lutas, que os Movimentos Sociais Campesinos advogam
por uma “Escola do Campo dos sonhos” como é referenciada no poema de Adilson de
Apiaim, militante do Movimento dos Trabalhadores(as) Rurais Sem Terra, desde 1988. Sonho
que expressa a reivindicação de uma escola que seja sentida-pensada-vivida nos seus
territórios e construída com/pelos povos do/no campo. Essa é uma demanda dos movimentos
no cenário das políticas públicas ao exigirem o direito de protagonizarem suas histórias.
Desse modo, este texto tem como objetivo identificar e caracterizar os saberes a serem
tratados na escola com turmas multisseriadas a partir das narrativas da comunidade
campesina. Ao problematizarmos a definição da identidade da escola do campo, evidenciada
pelas Diretrizes Operacionais da Educação do Campo, que é “definida pela sua vinculação às
questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos
estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros ...(Brasil, 2001, p. 22), supomos que a
escola com turmas multisseriadas vem promovendo suas práticas pedagógicas coletivamente
com os povos do campo. A Escola do Campo, socialmente referenciada em seus povos-
territórios, passa a configurar-se enquanto um espaço-tempo fértil para reconhecer e produzir
os saberes próprios da comunidade campesina.
Teórico-metodologicamente aproximamo-nos dos Estudos Pós-Coloniais (Quijano,
2005; Mignolo, 2008 & Walsh, 2008), por nos possibilitarem refletir sobre as heranças
coloniais impostas pela lógica moderna/colonial/capitalista/patriarcal/urbanocêntrica. Esses
Estudos emergem dos processos de luta e resistência dos povos que foram/são classificados e
hierarquizados como inferiores e que reivindicam sócio-politicamente o seu reconhecimento
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enquanto sujeitos de direito e produtores de epistemes válidas. Nesse sentido, os Estudos
Pós-Coloniais, ao instigar e problematizar as heranças coloniais, ajuda-nos a ... desatar o nó,
aprender a desaprender, e aprender a reaprender a cada passo (Mignolo, 2008, p. 305),
tencionando a lógica colonial e compreendendo que os povos do campo são sujeitos-
territórios de direitos e produtores de saberes.
Este trabalho, para além da introdução, apresenta a seguinte estrutura: a) Educação do
Campo e Saberes Campesinos: reflexões Pós-Coloniais; b) Percurso Metodológico; c) Saberes
a serem tratados na escola com turmas multisseriadas do campo: reflexões outras sentidas-
pensadas-vividas por sujeitos outros; d) Considerações Finais e; e) referências.
Educação do Campo e Saberes Campesinos: reflexões Pós-Coloniais
...A escola de meus sonhos
É aquela que mexe com nossas inquietações e que nos faz ousar na arte de PENSAR.
A escola de meus sonhos
É aquela que dialoga com as necessidades e reorganiza a nossa capacidade de AGIR.
A escola de meus sonhos
É aquela que faz renascer as emoções com prazer de APRENDER.
Na escola de meus sonhos
Não há lugar para o autoritarismo e nem para a paranoia do egoísmo ...
(Adilson de Apiaim)
Nesta seção, refletimos sobre Educação do Campo a partir de olhares outros para a
escola com turmas multisseriadas do campo e os saberes que são forjados nas/pelas
comunidades campesinas. Essa discussão é alicerçada nos Estudos Pós-Coloniais, através dos
conceitos de Colonialização, Colonialismo, Racialização, Racionalização, Colonialidade e
seus eixos: Poder, Saber, Ser e Natureza e, Decolonialidade (Quijano, 2005, 2007; Mignolo,
2008 & Walsh, 2008).
Os Estudos Pós-Coloniais nascem e se fortalecem mediante as lutas dos povos-
territórios que foram/são historicamente silenciados, formados em especial pelos Indígenas,
Negros, Feministas e Campesinos que foram/são subalternizados pelo processo do
Colonialismo e da Colonialidade. Esses Estudos possibilitam-nos questionar os processos de
silenciamentos e negação dos povos e territórios por meio da lógica da
Modernidade/Colonialidade, bem como os processos de enfrentamento e resistência.
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foi invadida e colonizada, tendo como base os processos de Racialização
e Racionalização. Essa lógica colonial constrói e implementa uma nova ordem de poder
configurada entre o dominante-dominado, a partir da qual, os povos superiores e produtores
das epistemologias válidas (Os europeus) e os povos inferiores, incapazes de produzir saberes
(Os não europeus) constituem a sociedade moderna/colonial.
O processo de Racialização forja-se na construção da ideia de raça como construção
mental e social. Centrado em elementos biológicos, se constrói o novo padrão mundial de
poder que institui o modelo de sujeito superior, apresentando as seguintes características:
homem, heterossexual, europeu, branco, cristão e urbano. Todos os demais sujeitos que não
atendam esses elementos são hierarquizados e classificados como sujeitos inferiores (Quijano,
2005). Nessa gica, os povos localizados nos territórios campesinos são considerados
subalternos, por não pertencerem ao território urbano, que no viés colonial, passa a se
autodenominar como lócus do avanço, do desenvolvimento e da ascensão social. Desse modo,
“segundo a ideologia dominante, o camponês sempre foi considerado como matuto,
analfabeto, fraco, atrasado, um ‘jeca tatu’; em síntese: o que necessita ser modernizado para
ser socializado” (Silva; Rodrigues & Lima, 2013, p. 130).
O processo de Racionalização caminha nessa mesma perspectiva, objetivando
consolidar o novo padrão de poder, passando a determinar uma única epistemologia válida.
Os povos europeus passam a ser os únicos detentores e legitimadores dos conhecimentos,
inferiorizando e negando os demais povos-territórios e seus saberes. No contexto da
Racionalização, instituíram-se os territórios e sujeitos produtores de conhecimentos.
O território campesino e seus sujeitos não são considerados como referências, nem
produtores de epistemologias válidas, e quando esses chegam a ter acesso à escola, se
deparam com uma realidade que destoa da sua, por ter como matriz de referência a cultura
urbana, que na lógica colonial, configura-se enquanto superior. Nessa direção, evidenciamos
que “a cultura hegemônica trata os valores, as crenças e os saberes do campo de maneira
romântica ou de maneira depreciativa, como valores ultrapassados, como saberes tradicionais,
pré-científicos, pré-modernos (Arroyo, 2009, p.79).
Consideramos que o Colonialismo, cunhado nos pilares da Racialização e da
Racionalização, deixa suas heranças mesmo depois que as colônias ficaram independentes.
A lógica moderna/colonial é ressignificada e passa a manifestar-se através da Colonialidade à
medida que continua hierarquizando, subalternizando, ditando os valores tidos como únicos/
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verdadeiros (europeu) e negando os demais povos, saberes e territórios. Desse modo, a
Colonialidade é concebida como
uno de los elementos constitutivos y específicos del patrón mundial de poder capitalista. Se
funda en la imposición de uma clasificación racial/étnica de la población del mundo como
piedra angular de dicho patrón de poder y opera en cada uno de los planos, ámbitos y
dimensiones, materiales y subjetas, de la existencia social cotidiana y a escala societal
(Quijano, 2005, p. 342).
A herança do Colonialismo, permanecida através da Colonialidade, vai configurando-se
enquanto um processo de exploração e dominação que penetra na estrutura social, na
dimensão material e imaterial, quando dita lugares e papéis que os sujeitos irão ocupar e na
dimensão subjetiva, ao legitimar comportamentos e epistemologias válidos. Essa herança vai
se manifestando e se constituindo no mínimo por quatro eixos: Colonialidade do Poder,
Colonialidade do Saber, Colonialidade do Ser (Quijano, 2005) e a Colonialidade da Mãe
Natureza (Walsh, 2008).
A Colonialidade do Poder busca hierarquizar de forma racial os povos entre inferiores e
superiores, baseada na imposição da ideia de raça como fator determinante para eleger os
sujeitos superiores e inferiores (Quijano, 2005). Esta lógica, impõe aos povos do campo o
não-lugar, enquanto os povos do território urbano autodenominam-se seres superiores.
Atrelado a essa hierarquização, que classifica os sujeitos superiores e inferiores, a
Colonialidade do Saber manifesta-se legitimando uma razão hegemônica, única e eurocêntrica
de produzir e difundir conhecimentos.
A partir desta lógica colonial, é instituída uma relação assimétrica entre os saberes do
território campesino, considerados como inválido e não saberes, frente aos que são produzidos
no território urbano, tidos como válidos e de referência. A escola do campo, nessa
perspectiva, é compreendida como um não-lugar, sem identidade e que se faz necessário
tomar como modelo as escolas localizadas no território urbano.
Na relação constante entre a Colonialidade do Poder e do Saber, constitui-se a do Ser,
com a internalização da subalternidade do não europeu/superior/colonizador. Nessa vertente,
“la colonialidad del ser apunta hacia el «exceso ontológico» que ocurre cuando seres
particulares imponen sobre otros y, más allá de esto, la efectividad potencial o actual de los
discursos con los cuales el otro responde a la supresión como un resultado del Encuentro”
(Escobar, 2003, p. 62). Essa dimensão consolida a condição do povo campesino como sujeitos
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inferiores, o não-epistêmico, o não-urbano e a não-referência para pensar uma escola. A
Colonialidade do Ser desconsidera que os saberes dos povos do/no campo “envolvem as
diferentes formas de compreender o território rural, pois os povos campesinos não anulam os
saberes existentes, mas os compreendem tomando como lente os seus saberes, as suas
epistemes” (Lemos, 2013, p. 84).
A Colonialidade da Mãe Natureza coloca em evidencia a relação de exploração entre o
homem e a natureza, centrada na concepção mercantil, contribuindo para o desenvolvimento
do território do agronegócio. De acordo com Girardi e Fernandes (2013, p. 36), o território do
agronegócio “é caracterizado pela exploração do trabalho assalariado, mecanização intensa,
grandes propriedades de terra, especulação imobiliária, danos ambientais em grande escala,
monocultura, produção”. Em nome do desenvolvimento e da modernidade, a Natureza é
silenciada e compreendida como moeda de troca passiva de negociação. Segundo Walsh
(2008, p. 138), a Colonialidade da Mãe Natureza encuentra su base en la división binaria
naturaleza/sociedad, descartando lomágico-espiritual-social, la relación milenaria entre
mundos biofísicos, humanos y espirituales, incluyendo el de los ancestros, la que do sustento
a los sistemas integrales de vida y a la humanidad misma”.
A inferiorização e mercantilização da Natureza desconsideram a dimensão ancestral,
espiritual, religiosa, cultural e identitária dos povos do/no campo com a terra. Na direção da
Colonialidade da Mãe Natureza, a relação de pertencimento dos campesinos com a terra não
se enquadra nos padrões coloniais capitalistas. Dessa forma, a Natureza é violada
constantemente e através da lógica colonial é coisificada, justificando-se assim a sua
exploração.
No tocante às forças que contrariam as heranças coloniais, manifestadas pela
Colonialidade, é necessário considerar que os povos subalternizados, a exemplo dos povos
que foram/são silenciados, como os povos do/no campo, lutam e resistem a esse processo de
controle e dominação, compreendido aqui como Decolonialidade. Mignolo (2008, p. 304) ao
refletir sobre opções descoloniais, nos possibilita compreender que “descolonial significa
pensar a partir da exterioridade e em uma posição epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia
epistêmica que cria, constrói, elege um exterior a fim de assegurar sua interioridade”.
O território de disputa forjado na relação de dominado-dominador, imposta pela
Colonialidade, passa a ser questionado e coloca em evidência a necessidade de considerar
territórios, sujeitos e saberes outros que foram sonegados e invalidados pela cultura
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eurocêntrica, moderna, colonial e urbanocêntrica. Concordamos com Bernardino-Costa &
Grosfoguel (2016, p. 20), ao argumentarem que a decolonialidade
não se constitui num projeto acadêmico que obrigaria aqueles que a adotassem a citar
seus autores e conceitos chaves, nem se constitui numa espécie universalismo abstrato
(um particular que ascende à condição de um desígnio universal global). Caso isso
ocorresse, estaríamos nos deparando com um novo colonialismo intelectual não mais da
Europa, mas da América Latina.
Assim, os povos do campo, ao apresentarem os saberes que são produzidos em suas
comunidades e reivindicarem que tais saberes sejam trabalhados nas escolas, estão, sobretudo,
protagonizando ões decolonais, reivindicando assim, um projeto de Educação do e no
Campo a partir de seus saberes e histórias. No tocante à concepção de Escola do Campo,
Molina e (2012, p. 326) evidenciam que “nasce e se desenvolve no bojo do movimento da
Educação do Campo, a partir das experiências de formação humana desenvolvidas no
contexto de luta dos movimentos sociais camponeses por terra e educação”. Essa concepção
materializa-se como bandeira de luta e resistência dos povos do campo que reconhecem a
escola como um direito e um lócus de afirmação identitária. A escola do campo estrutura-se
pelos processos de lutas dos/as trabalhadores/as do campo contra à lógica moderna/colonial
que historicamente os tratava/trata como massa de manobra para manter o sistema capital.
Assim, consideramos que
os saberes dos povos campesinos correspondem às epistemes dos povos subalternizados,
ou seja, saberes que têm especificidades tanto nas relações socioculturais, políticas e
econômicas quanto na organização, nas suas experiências e nas vivências em sociedade,
ou seja, saberes fronteiriços, Epistemologias de Fronteira. Logo, são saberes que resultam
do diálogo entre os saberes do território rural e os outros saberes, constituindo com isso
epistemologias Outras, conteúdos de aprendizagem Interculturais (Lemos, 2013, p.79).
No bojo das Escolas do Campo, as turmas multisseriadas constituem-se como uma
possibilidade para o desenvolvimento de uma formação educativa nos territórios campesinos,
a partir da qual os(as) discentes de diferentes faixas etárias constroem aprendizagens e
conhecimentos coletivamente. A existência dessas turmas, principalmente no território
brasileiro, ocorre em decorrência da baixa densidade populacional nas comunidades do campo
que passam a frequentar a escola.
Hage (2015, p. 4) evidencia que a identidade das escolas com turmas multisseriadas
centra-se na heterogeneidade, quando em uma única sala de aula reúnem-se “estudantes de
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diferentes idades, por vezes até gerações, diferentes séries, ritmos de aprendizagem,
alfabetizados e não alfabetizados, sob a responsabilidade de um único professor ou
professora, por isso são denominadas de unidocentes”. É assim, reconhecendo as diferenças
que perpassam na construção dos povos-territórios campesinos, que compreendemos a
importância de seguirmos decolonializando as escolas do campo, ao reivindicarmos que os
saberes campesinos constituam as práticas pedagógicas e curriculares das instituições de
ensino.
Atrelada a essa reflexão, compreendemos que as comunidades campesinas se
constituem por indivíduos ou por grupos que se identificam por um sentimento de
pertencimento comum, de partilha e de coesão social, com valores e tradições, sendo passados
de geração a geração, reforçando os laços de pertencer a um grupo com o qual se identificam
e se reconhecem (Silva & Hespanhol, 2016, p. 365). É mediante suas marcas culturais e
identitárias que as comunidades campesinas vão se organizando e produzindo saberes
específicos e diferenciados.
Percurso Metodológico
... A escola de meus sonhos
É aquela que tem todos como gente, é humana, solidária e companheira.
A escola de meus sonhos
É aquela que aprende com o outro,
É aquela que constrói sua própria caminhada.
A escola de meus sonhos
É verdadeira, honesta e expande a arte, o ouvir e escutar a beleza do belo.
A escola de meus sonhos
Não é essa que molda o ser humano, mas capacita interage e transforma o SER...
(Adilson de Apiaim)
Esta seção constitui-se através dos procedimentos teórico-metodológicos desta pesquisa
a partir dos seguintes elementos: instrumentos de coleta de dados; sujeitos e lócus da pesquisa
e; procedimento de análise dos dados. Consideramos que os processos aqui adotados
configuram-se como um ato político-ideológico e compreendemos a metodologia “como o
conhecimento crítico dos caminhos do processo científico, que indaga e questiona acerca de
seus limites e possibilidades; e o reconhecimento de que todo conhecimento sociológico tem,
como fundamento, um compromisso com valores” (Martins, 2004, p. 289). Alicerçamos
nosso compromisso com este estudo à medida que não buscamos respostas prontas e
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absolutas, mas ao refletir teórico-metodologicamente acerca da(s) realidade(s), considerando
seus aspectos sociais, políticos, econômicos, culturais, entre outros.
Como instrumento de coleta de dados, utilizamos entrevistas semiestruturadas, que
“incluem uma lista de questões previamente preparadas, mas o pesquisador utiliza-a apenas
como um guia, acompanhando os comentários importantes feitos pelo entrevistado”
(Lankshear & Knobel, 2008, p. 174). Desse modo, contamos com a colaboração de três
lideranças da comunidade como sujeitos-vozes-saberes, identificados neste estudo por: Zito
da Galileia, Mauricéia e Wilson; e com quatro mães/responsáveis de estudantes que fazem
parte das turmas multisseriadas, identificadas por: Adenísia, Damiana, Maria Celma e
Marilene. Os sete sujeitos deste estudo fazem parte da comunidade do Engenho Galileia
iii
,
localizado no território campesino do município de Vitória de Santo Antão-PE, compreendido
aqui como um território multidimensional que vai se forjando a partir das interrelações
pensadas-sentidas-vividas pelos povos campesinos.
As entrevistas foram realizadas no mês de agosto de 2020 de forma presencial,
buscando respeitar todos os protocolos de segurança e prevenção da Covid-19, a exemplo: o
distanciamento, o uso de máscaras e álcool em gel. Destacamos também que as gravações das
entrevistas ocorreram sob o consentimento de todos(as) por meio do termo de autorização
para gravação de voz, bem como as transcrições, que foram realizadas respeitando a forma-
saber de escolha vocabular e dicção de cada sujeito colaborador(a) do referido estudo.
Para tratar os dados utilizaremos a Análise de Conteúdo via Análise Temática (Bardin,
2011; Vala, 1999), por nos possibilitar acessar os núcleos de sentido que constituem o nosso
objeto. Nessa direção, compreendemos que
a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análises das comunicações. Não se trata
de um instrumento, mas de um leque de apetrechos; ou, com maior rigor, será um único
instrumento, mas marcado por uma grande disparidade de formas e adaptável a um campo de
aplicação muito vasto: as comunicações (Bardin, 2011, p. 37).
Adotamos a técnica de Análise de Conteúdo por possibilitar que o(a) pesquisador(a)
possa realizar inferências a partir dados coletados, considerando a base teórica na qual estão
alicerçados. A pesquisa configura-se enquanto um espaço-tempo de reflexões acerca dos
documentos, considerando o contexto histórico-político-social no qual foram forjados.
Segundo Vala (1999, p. 104), “o material sujeito à análise de conteúdo é concebido como
resultado de uma rede complexa de condições de produção”.
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Evidenciamos que a Análise do Conteúdo via Análise Temática, segundo Bardin
(2011), ocorre em três fases: pré-análise, exploração do material, tratamento e inferências. A
pré-análise materializa-se por meio da seleção do material de investigação e da retomada dos
objetivos e dos pressupostos iniciais da pesquisa. Nesse estudo, temos como materiais/fontes
da pesquisa as narrativas dos sujeitos colaboradores(as) da referida pesquisa. A exploração do
material corresponde a codificação dos dados, transformando os dados brutos em núcleos de
compreensão, para deles inferirmos significados.
O tratamento e inferências se referem à construção de uma rede de sentidos e de
significados em torno da temática em questão, através de uma perspectiva teórica,
considerando os contextos em que os dados foram produzidos. Nessa pesquisa, o tratamento e
inferências ocorreram com base na abordagem teórico-metodológica dos Estudos Pós-
Coloniais, evidenciando o contexto em que os discursos dos(as) moradores(as) da
comunidade campesina foram construídos.
Saberes a serem tratados na escola com turmas multisseriadas do campo: reflexões
outras sentidas-pensadas-vividas por sujeitos outros
...A escola de meus sonhos
É aquela que ama seus agentes e propicia alegria de ser gente.
A escola de meus sonhos
É mais do que escola, é mais que ler e escrever, mais do que calcular a realidade,
A escola de meus sonhos
É aquela que estimula a capacidade de brincar, desenhar, pintar e esculpir a vida.
(Adilson de Apiaim)
Esta subseção configura-se através dos achados apresentados pelos(as) moradores(as)
do Engenho Galileia no que se refere aos saberes a serem tratados na escola. Ao objetivarmos
compreender as expectativas da comunidade campesina sobre a escola com turmas
multisseriadas do campo, consideramos que os sujeitos do campo têm muito a nos dizer sobre
os saberes que necessitam/necessitariam fazer-se presentes na escola. Nesse sentido,
trataremos os seguintes Núcleos de Sentido identificados nos discursos da comunidade
campesina: a) Saberes por áreas de conhecimento, caracterizados por: Conteúdos
Contextualizados; b) Saberes dos povos-territórios campesinos, compostos pelos seguintes
elementos: a História do Engenho, as Ligas Camponesas, a Reforma Agrária, a Agricultura
Familiar e a Preservação Ambiental, como podemos observar a seguir na Figura 1:
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Figura 1 - Saberes a serem tratados na escola com turmas multisseriadas do campo.
Fonte: Os pesquisadores.
Esses saberes, identificados nas narrativas da comunidade do Engenho Galileia,
ancoram-se na compreensão de saberes como sendo “aquilo que a gente aprende, eu sei de
uma coisa, você sabe de outra e assim a gente vai aprendendo junto” (Maria Celma, agosto,
2020), e “é tudo que a gente aprende nos lugares, que vai passando de geração em geração, e
vai ficando na história” (Marilene, agosto, 2020). Esses discursos reconhecem que o saber é
algo construído e validado coletivamente, e assim analisamos essas concepções no viés da
Ecologia de Saberes que se refere ao reconhecimento e à valorização dos saberes que foram
historicamente negados, a exemplo dos povos-territórios campesinos.
Segundo Santos (2010, p. 48), “na ecologia de saberes ... a busca de credibilidade para
os conhecimentos não-científicos não implica o descrédito do conhecimento científico.
Implica, simplesmente, a sua utilização contra-hegemônica”. Trata-se, assim, de promover um
diálogo crítico-reflexivo entre a escola e os povos-territórios, construindo (inter)relações
outras na elaboração e vivência de práticas pedagógicas socialmente referenciadas nos saberes
dos sujeitos.
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Saberes por áreas de conhecimento
No que diz respeito aos saberes a serem tratados na escola com turmas multisseriada do
campo, os discursos dos(as) moradores(as) do Engenho Galileia evidenciam que os saberes
por áreas de conhecimento façam-se presentes na instituição escolar, constituídos pelos
conteúdos contextualizados. Essa concepção pode ser notada na narrativa apresentada por
Adenísia (agosto, 2020):
a escola tem que trabalhar as matérias, né? Português, matemática, a ciência, geografia,
história. É bom que ensine tudo, os meninos precisam saber. Tem assunto que é
importante pra vida, né? Saber ler, escrever, conhecer as coisas do mundo. Cada matéria
dessa é importante, a professora trabalha isso com os alunos, puxa pra realidade dele e
isso é bom.
O destaque sobre as matérias apresentadas no discurso da moradora acima pode ser
compreendido aqui como sendo as áreas de conhecimento que compõem a proposta curricular
da escola. É nessa direção que reconhecemos que os saberes a serem tratados no contexto
dessas áreas sejam selecionados e tratados em diálogo com a realidade dos(as) estudantes. A
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional- LDB 9.394/96, ao abordar a oferta dos
conteúdos curriculares, no contexto da educação básica para a população campesina,
determina que “os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação
às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente: I conteúdos curriculares e
metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural” (Brasil,
1996, p. 21).
Ressaltamos que os conteúdos curriculares que compõem as áreas do conhecimento são
frutos de lutas e tensões, pois o currículo é um território em disputas (Arroyo, 2013). Desse
modo, advogar propostas curriculares outras que a escola trabalhe de forma contextualizada
corrobora com a construção de uma escola com turmas multisseriadas do campo específica e
diferenciada. Nessa mesma perspectiva, Damiana (agosto, 2020) argumenta que “os assuntos
que as professoras trabalham é importante, o aluno tem que aprender e conhecer, um aprende
com o outro. A escola aqui é multisseriada é muito importante estudar todas as matérias como
a escola da rua”.
A moradora segue reforçando a relevância de ser trabalhado na escola os conteúdos que
perpassam as áreas de conhecimento, configurando-se assim, como um direito dos povos do
campo a terem um processo formativo que não seja inferior aos do território urbano. É nesse
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contexto que se insere a construção de uma escola que reconhece a importância de tratar os
conteúdos contextualizados e vividos a partir das áreas de conhecimento sem serem
engessados e/ou folclorizados. Nessa direção,
não podemos separar os conteúdos em fronteiras disciplinares rígidas, ainda que as
disciplinas sejam importantes, precisam organizar formas de comunicação entre as
disciplinas, e compreender também que existem conhecimentos que não fazem parte de
nenhuma fronteira disciplinar (Jesus, 2004, p. 72).
A escolha intencional e planejada dos conteúdos, visando atender às reais necessidades
dos(as) estudantes, necessita fazer parte do trato com os saberes que são/serão abordados no
chão da escola. Chamamos a atenção para uma seleção centrada no diálogo entre escola-
comunidade onde os conhecimentos eleitos para compor o currículo escolar sejam enraizados
e protagonizados pelos seus sujeitos. Refletimos sobre os saberes por áreas de conhecimento,
na perspectiva da Ecologia de Saberes que “procura dar consistência epistemológica ao
pensamento plural e propositivo” (Santos, 2010, p. 47), ao reconhecer que os conteúdos a
serem enfatizados na escola, sejam contextualizados, tomando como referência a realidade
territorial, social e cultural dos sujeitos. Diante desses dados, concluímos que os saberes por
áreas de conhecimento, e que emergem das expectativas da comunidade ao refletirem sobre a
escola com turma multisseriada, são relevantes na medida em que são materializados por
conteúdos contextualizados, ou seja, que dialoguem com o espaço-tempo dos sujeitos
ensinantes-aprendentes.
Saberes dos povos-territórios campesinos
A respeito dos saberes a serem tratados na escola com turmas multisseriadas do campo
trazidos nos discursos dos(as) moradores(as) do Engenho Galileia, evidenciamos também os
saberes dos povos-territórios campesinos que se vinculam à realidade da comunidade
campesina. Assim, identificamos e caracterizamos os seguintes saberes: a) a História do
Engenho; b) as Ligas Camponesas; c) a Reforma Agrária; d) a Agricultura Familiar; e) a
Preservação Ambiental.
O primeiro tipo de saber dos povos-territórios campesinos que a comunidade espera ser
tratado na escola é a História do Engenho, como podemos ver no discurso de Zito da
Galileia (agosto, 2020), “todo mundo tem o direito de conhecer sua história. Eu acho que
conhecer as pessoas que lutaram pra gente está aqui hoje, a história de Galileia. A escola tem
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que ensinar aos alunos a conhecer sua história, a história de suas famílias”. Essa reivindicação
do trato da história da comunidade na escola também é pontuada por Damiana (agosto, 2020),
ao destacar que “a história aqui de Galileia, as lutas dos trabalhadores daqui na época do
trabalho no engenho. O povo mais antigo conta que lutaram com Julião e conseguiram sua
independência. É importante né, os alunos conhecerem a sua própria história”.
Ao tomar a História do Engenho como saber a compor as práticas pedagógicas da
escola multisseriada do campo, a comunidade campesina reconhece que seu território
constitui-se como sendo um espaço-tempo de conhecimentos próprios que necessitam ser
evidenciados na/pela escola. Caldart (2003, p. 70), argumenta que sempre que “uma escola
desconhece e ou desrespeita a história de seus alunos, toda vez que se desvincula da realidade
dos que deveriam ser seus sujeitos, não os reconhecendo como tal, ela escolhe ajudar a
desenraizar e a fixar seus educandos num presente sem laços”.
A escola, ao reconhecer a história da comunidade como sendo um dos saberes que se
faz necessário tratar, possibilita que cada vez mais estudantes possam (re)afirmar sua
identidade como sujeitos do campo, compreendendo-se como sujeitos de direito. Mauricéia
(agosto, 2020), nessa mesma perspectiva, pontua que
saber é aquilo que a gente vai construindo de geração em geração. São as coisas que
marca a história do engenho, do povo que mora aqui. Essa história não pode morrer, a
gente tem que repassar. Se você perguntar aos mais novo daqui quase não sabe sobre a
história da comunidade, a luta pelo direito da terra. Por isso que eu acho importante a
escola fala da história da gente. Por que o povo mais velho vai morrendo e as coisas que
aconteceu aqui se acaba se nós não falar, né?
Nesse discurso fica evidente a importância de manter viva a história construída pelos
sujeitos-territórios, bem como a relevância de ouvir os mais velhos, que sentiram-viveram
experiências culturais e políticas que marcam a comunidade. Nessa vertente, a escola torna-se
aliada da construção de um projeto educacional que toma a história da comunidade campesina
como sendo um conhecimento outro que fortalece o pertencimento dos(as) estudantes no
campo. Essa é uma das formas de ação decolonial (Mignolo, 2008) que se distancia da
Colonialidade do Saber, validando que o território campesino é produtor de epistemologias
outras.
As narrativas apresentadas pelos(as) moradores(as) do Engenho Galileia ao
reconhecerem a história da comunidade como sendo um saber a ser tratado na escola, são
retratos dos processos de pertencimento e respeito com a sua história. Podemos concluir que é
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tarefa da escola contribuir na construção de “um Ideário que orienta a vida das pessoas e
inclui também as ferramentas culturais de uma leitura mais precisa da realidade em que vivem
... enraizar as pessoas na história, para que se compreendam como parte de um processo
histórico” (Caldart, 2004, p. 25). A comunidade campesina passa, assim, a ocupar um lugar de
protagonismo quando tem sua história sistematizada e referenciada na escola pelos seus
próprios sujeitos.
O segundo saber, as Ligas Camponesas, ganha relevo nos discursos da comunidade
campesina, pois considera que o Engenho Galileia foi um dos principais territórios que
protagonizou as lutas das Ligas Camponesas. Assim, os(as) moradores(as) destacam a
relevância desse saber ser tratado na escola, que se relaciona estritamente com as histórias
dos(as) estudantes da comunidade. Essa afirmação ganha corpo no discurso de Zito da
Galileia (agosto, 2020) ao pontuar que
a escola precisa trabalhar com os alunos a história das Ligas Camponesas, se você perguntar
aos meninos o que foi as Ligas, não vão saber dizer. E foi aqui no nosso Engenho que em
1955 teve a criação da Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco.
Então, foi aqui em Galileia que começou no Nordeste as Ligas Camponesas, as lutas pelo
direito da terra, pelo direito do homem do campo ser visto como gente. Ai a gente tem
Francisco Julião, José dos Prazeres, nossos parentes, meu avô, os trabalhadores de Galileia
que fizeram parte dessa história.
O destaque para as Ligas Camponesas, como sendo um dos saberes dos povos-
territórios campesinos a serem trabalhados na escola, nos instiga a refletir sobre a importância
de conduzir os processos de ensino e aprendizagens a partir da realidade (Freire, 1987).
Assim, tomamos o conhecimento das Ligas Camponesas na perspectiva da Ecologia de
Saberes que “expande o carácter testemunhal dos conhecimentos de forma a abarcar
igualmente as relações entre o conhecimento científico e não-científico, alargando deste modo
o alcance da intersubjetividade como interconhecimento e vice-versa” (Santos, 2010, p. 49-
50). Para uma ecologia de saberes, conhecimentos como esses necessitam compor os saberes
e conteúdos trabalhados na escola, possibilitando que sujeitos outros se percebam sujeitos da
história.
Ao seguirmos questionando sobre quais saberes da comunidade os(as) moradores(as)
consideram que deveriam ser tratados na escola com turmas multisseriadas, Wilson (agosto,
2020) reforça dizendo que
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é justamente esse saber, a história aqui das Ligas Camponesas que aconteceu aqui em
Galileia, entender como essa luta aconteceu, quem fez parte essas coisas e continuar
mantendo viva nossa história. Meu pai Cícero Anastácio fez parte dessa história, foi ele
que foi um dos fundadores da Associação, ele era articulador nessa luta junto aos
camponeses.
Nesse sentido, é pertinente frisar que a comunidade campesina reconhece as histórias de
lutas e resistências protagonizadas pelos povos-territórios campesinos como saberes válidos a
serem tratados na escola. Assim, a história das Ligas Camponesas, que ocorre no Engenho
Galileia, representa um marco histórico-político na organização social da comunidade. As
Ligas Camponesas deixam lições que seguem influenciando movimentos sociais que lutam
pelo direito e permanência na terra, “com sua esperança animam os sujeitos concretos e
singulares, que se organizam, se transformam, baseando a sua ação no fazer político-
pedagógico cotidiano em favor dos direitos da coletividade” (Silva & Torres, 2015, p. 608).
Assim, reconhecer que as Ligas Camponesas contribuíram político-pedagogicamente
nas lutas dos povos do campo é, sobretudo, reivindicar que esse saber se faça presente na
escola localizada no Engenho Galileia, como também em todas as instituições de ensino,
que esse fato histórico faz parte da formação do povo-campo brasileiro. Cabe à escola o trato
específico e diferenciado desse saber, promovendo assim, práticas pedagógicas decoloniais,
estabelecendo diálogos com os saberes-histórias dos povos do campo. Nesta perspectiva, a
escola se distancia da percepção colonial, onde “os sujeitos são chamados à escola e nelas se
encontram com práticas que frequentemente negam suas diferenças, reduzem a alteridade à
mímica, enfatizam a normalização e celebram a diversidade, instituindo discursos em que o
outro perde o direito de narrar-se” (Esteban, 2010, p. 51).
Atrelado ao saber referente às Ligas Camponesas, emergem as narrativas da
comunidade campesina, o saber sobre a Reforma Agrária que está relacionado diretamente
às conquistas dos(as) trabalhadores(as) do Engenho Galileia, como podemos observar em Zito
da Galileia (agosto, 2020),
a História das Ligas Camponesas, as questões da Reforma Agrária, por que Galileia foi
um primeiro exemplo de Reforma Agrária, aqui. Tudo isso a escola deveria trabalhar.
Porque muitos pais nunca falaram dessas histórias para seus filhos e o que acontece é que
se não falarmos esse saber vai sendo esquecido. E tem que ser trabalhado com orgulho
porque faz parte de nossa história.
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Para Zito de Galileia (agosto, 2020), a discussão sobre Reforma Agrária é um
conhecimento outro que necessita ser abordado na escola, oportunizando que os(as)
estudantes conheçam os processos de lutas vividos pelos(as) trabalhadores(as) do campo,
sobretudo, pelo direito à terra. Segundo Julião (2013, p. 167), o Engenho Galileia passou a ser
um território “para forjar, na consciência dos camponeses da região, a ideia de que a reforma
agrária não consiste na pura e simples desapropriação da terra, mas na sua entrega a quem
nela trabalha sem outro ônus que não seja o de seguir cultivando-a com suas próprias mãos”.
Podemos considerar, então, que os(as) moradores(as) do Engenho Galileia ao pontuarem a
Reforma Agrária como sendo um saber dos povos-territórios do Engenho Galileia, reforçam a
construção de um projeto de sociedade, no qual suas bandeiras de lutas sejam referenciadas e
abordadas na escola.
Esse saber pode ser notado também no contexto dos elementos culturais que constituem
a história do Engenho Galileia quando Wilson (agosto, 2020), afirma que
as lutas dos agricultores aqui de Galileia, junto com Julião é um acontecimento no
contexto da Reforma Agrária e que é na minha opinião é um elemento de nossa cultura,
né, que também faz parte dos conhecimentos daqui. Essa luta em busca do direito da
terra, aqui a muitos anos atrás meu pai contava que os trabalhadores aqui trabalhavam na
terra e pagava por ela, pagava um dia de foro ao dono do engenho, eram muitos
massacrados, meu pai contava que quando alguém morria aqui pegava um caixão na
prefeitura emprestado para enterrar o cidadão. Então é justamente essa luta que faz parte
daqui da cultura e da história de Galileia, a vitória do povo pelo direito da terra. Aí, acho
que isso tem que ser estudado na escola também, para ajudar aos alunos a também
lutarem por seus direitos.
Nesse caso, a escola passa a configurar um projeto de intencionalidade política e
pedagógica junto aos trabalhadores(as) do campo, contribuindo para a formação de sujeitos
críticos e militantes. Assim, conhecer sua história e fomentar saberes outros que vão gerando
inquietações, tende a confrontar os processos da subalternização (Quijano, 2005), onde os
povos-territórios campesinos passam a combater os mecanismos de silenciamento,
reivindicando suas condições epistêmicas para terem seus saberes-histórias referenciados na
escola. Em vista disso, concordamos com Fernandes (2008, p. 5), ao pontuar que “política de
reforma agrária não é somente uma ação do Estado. É antes uma ão dos movimentos
camponeses. Sem luta pela terra não há reforma agrária”. Desse modo, é possível concluir que
os(as) moradores(as) ao destacarem a Reforma Agrária como sendo um saber a ser abordado
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na escola, advogam por uma educação crítica que se constrói no diálogo entre os diferentes
saberes, dentre eles, os locais vividos pelos sujeitos do campo.
Outro tipo de saber identificado nas narrativas dos(as) moradores(as) é a Agricultura
Familiar, que é apresentada como um elemento presente na comunidade que possui
conhecimento próprio e que necessita ser trabalhada na escola, como bem nos sinaliza Wilson
(agosto, 2020), ao dizer que “a escola devia trabalhar mais a importância da agricultura,
reconhecer o valor da agricultura. A importância de plantar e cultivar, tem que valorizar o que
vem da terra, as nossas plantações”. Com isso, compreendemos a escola como um lugar que
forma pessoas em diálogo com sua realidade. Nesse sentido, a agricultura é um elemento que
constitui a comunidade do Engenho Galileia.
Para Neves (2012, p. 35), a Agricultura Familiar “corresponde a formas de organização
da produção em que a família é ao mesmo tempo proprietária dos meios de produção e
executora das atividades produtivas”. Essa compreensão é referenciada também no discurso
de Mauricéia (agosto, 2020), quando nos diz que
a agricultura aqui é muito forte, né? A gente mesmo trabalha na terra, a gente planta,
cultiva milho, feijão macaxeira. Tem morador que tem plantação de hortaliça, tudo em
família, pai e filho trabalha junto. A gente mesmo vende milho, as coisas são pra gente
mesmo e também aqui o povo vende. Eu mesmo nasci e vou morrer agricultora, é isso, e
eu acho que a escola tem que ensinar os alunos a ter orgulho da terra, da agricultura, que
seus pais, são da agricultura também.
O trato da Agricultura Familiar, presente no discurso da moradora, conota uma
concepção de protagonismo dos(as) agricultores(as) que são sujeitos da terra e que têm suas
fontes de renda atreladas ao trabalho com as plantações. Assim, o reconhecimento da
Agricultora configura-se como um elemento importante a ser trabalhado na escola,
contribuindo, desse modo, no fortalecimento dessa identidade e profissão.
Ao ser questionada sobre os saberes presentes na comunidade, que em sua perspectiva
poderiam ser abordados, Marilene (agosto, 2020) também faz menção à Agricultura Familiar,
ao destacar que “a importância da agricultura, ensinar que cada plantação tem um tempo e
também a dizer que ser agricultor não é algo ruim”. Essa compreensão nos possibilita
evidenciar que o projeto da Agricultura Familiar se enraíza na contramão da Colonialidade, ao
tomar os sujeitos-territórios como produtores(as) e floresce contrapondo-se ao capitalismo
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que explora assimetricamente a natureza e os(as) trabalhadores(as) do campo. A Agricultura
Familiar, conforme Wanderley (2000, p. 36), foi
oficialmente reconhecida como um ator social. Antes vistos apenas como os pobres do
campo, os produtores de baixa renda ou os pequenos produtores, os agricultores
familiares são hoje percebidos como portadores de uma outra concepção de agricultura,
diferente e alternativa à agricultura latifundiária e patronal dominante no país.
Nesse processo de reconhecimento dos sujeitos-territórios outros pelas vias da
Agricultura Familiar que, por sua vez, propõe formas outras com o trato com a terra, constrói-
se um projeto de Educação do/no Campo atento aos cuidados com a natureza. A escola do
campo passa a ser aliada a esse projeto ao trabalhar os princípios políticos e pedagógicos que
ancoram a Agricultura Familiar, que vão desde uma posição contrária ao agronegócio, até o
repensar sobre o lugar-papel do(a) trabalhador(a) do campo no trato com a terra.
É atrelado ao trato específico e diferenciado com a terra, presente na Agricultura
Familiar, que outro saber emerge nos discursos da comunidade do Engenho Galileia, a
Preservação Ambiental, compreendida como uma pauta a ser tratada para além dos
componentes de Ciências e História, mas como ato político dos(as) moradores(as) do campo.
Nesse sentido, em discursos como “a gente tem que cuidar da natureza, preservar o que é
nosso” (Maria Celma, agosto, 2020), e “cuidar do ambiente não é só uma matéria que o aluno
estuda e pronto, tem que servir pra cuidar da natureza aqui mesmo, eu acho que a escola
tem que ensinar isso aos alunos também” (Mauricéia, agosto, 2020), ao conceber a
importância de cuidar da natureza, reconhece, sobretudo, que a preservação ambiental é algo
que ultrapassa o espaço-tempo da sala de aula e constitui-se como uma demanda coletiva.
Essa concepção apresenta-se como uma opção decolonial, ao se contrapor com a
Colonialidade da Mãe Natureza (Walsh, 2008), denunciando os modos-fazeres de tratar a
natureza impostos pelos colonizadores, que viam a terra como algo utilitarista para a
exploração. A Preservação Ambiental sinaliza uma dimensão outra no que se refere ao
relacionamento com a natureza. A inserção desse saber no chão da escola torna-se uma
possibilidade de formar estudantes mais conscientes sobre seu papel na preservação do meio
ambiente, como podemos observar quando Zito da Galileia (agosto, 2020) assinala que
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as vezes a gente pessoas vindo aqui desmatar as árvores aqui, a gente denuncia, por
que tudo que a gente tem é essa terra, foi tanta luta pra gente aqui. A gente tem que
valorizar, tem que preserva. eu acho importante a escola ensinar isso aos alunos, eles
são os futuros, tem que cuidar disso tudo que a gente tem, é nosso.
Nota-se que os discursos dos(as) moradores(as) do Engenho Galileia demonstram a
relevância de preservar o ambiente e, por sua vez, contribuir na formação dos(as) estudantes
com o objetivo de assumirem uma postura política que seja voltada para a proteção e o
cuidado com o seu território. A partir dessa compreensão, concordamos com Fernandes
(2002, p. 63) ao considerar que “o campo é lugar de vida, onde as pessoas podem morar,
trabalhar, estudar com dignidade de quem tem o seu lugar e a sua identidade cultural. O
campo não é só o lugar da produção agropecuária e agroindustrial, do latifúndio e da grilagem
de terras”. Assim, o modo de pensar-sentir-viver a natureza, perpassa pela dimensão ancestral,
espiritual e de pertencimento, pelas quais os povos se fazem coletivamente.
Podemos afirmar, a partir das análises realizadas, que a comunidade campesina ao
compreender que o “saber é aquilo que ninguém tira da gente. São as coisas que a gente
aprende né? na escola, em casa, no engenho, em todo lugar” (Damiana, agosto, 2020),
reconhece a necessidade da relação entre escola e comunidade. Segundo Arroyo (1999, p. 17),
“temos uma larga história que sempre defendeu que os saberes que a escola rural deve
transmitir devem ser poucos e úteis para mexer com a enxada, ordenhar a vaca, plantar,
colher, levar para a feira”. Essa gica serviu historicamente para fundamentar a visão
utilitarista da escola e justificar as práticas pedagógicas desenvolvidas de forma
descontextualizada da(s) realidade(s) dos povos do campo. Assim, sinalizamos que os saberes
trabalhados nas áreas de conhecimento, traduzidos pelos conteúdos prescritos na escola desde
que sejam contextualizados, são importantes tanto quanto os saberes dos povos-territórios
campesinos que protagonizam lutas por uma Educação do/no Campo.
Considerações finais
... A escola de meus sonhos
É aquela que cria e recria o mundo para CRIAR e recriar a própria existência.
É aquela que muda a lógica de viver e conviver
A escola de meus sonhos
É aquela que aguça e transforma o conteúdo e seu objeto.
(Adilson de Apiaim)
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Para finalizar esta discussão, seguimos sonhando e esperançando por uma escola do
campo que de fato gere possibilidades outras de criação e recriação junto aos povos-territórios
do campo e seus saberes. Consideramos que este estudo caminha na contramão da negação e
silenciamento das diferenças e passa a ocupar político-pedagogicamente um espaço-tempo de
possibilidades outras.
Assim, ao refletirmos sobre às lutas dos Movimentos Sociais Campesinos por uma
Educação do/no Campo específica e diferenciada, principalmente as que se referem a
construção de uma “escola dos sonhos”, como evidenciada no poema de Adilson de Apiaim.
Escola essa, que seja construída por várias mãos e referenciada em seus sujeitos e territórios.
A partir das reflexões e análises realizadas ao longo da pesquisa, ao buscarmos
identificar e caracterizar os saberes a serem tratados na escola com turmas multisseriadas a
partir das narrativas da comunidade campesina, identificamos os seguintes núcleos de sentido:
a) Saberes por áreas de conhecimento, caracterizados por: Conteúdos Contextualizados; b)
Saberes dos povos-territórios campesinos, compostos pelos seguintes elementos: a História do
Engenho, as Ligas Camponesas, a Reforma Agrária, a Agricultura Familiar e a Preservação
Ambiental.
Esses elementos, evidenciam que a comunidade campesina compreende o potencial
formador da escola, bem como considera que os(as) estudantes das escolas do campo,
enquanto sujeitos de direito, necessitam acessar e produzir saberes vinculados às áreas de
conhecimento, ou seja, os componentes curriculares, porém de forma contextualizada. Esse
processo necessita ocorrer em diálogo com a realidade da comunidade e considerando seus
saberes. Atrelada a essa reflexão, os(as) moradores(as) da comunidade campesina, consideram
que os saberes próprios da comunidade necessitam fazer parte da proposta curricular e
pedagógica da escola, sem serem folclorizados, mas construídos a partir dos saberes-histórias
narrados e vividos pela comunidade.
Desse modo, consideramos também que ao consultarmos a comunidade campesina
sobre suas expectativas para a escola com turmas multisseriadas, questionando quais os
saberes deveriam/necessitariam ser tratados na escola, realizamos um giro decolonial, pois
reconhecemos que os povos-territórios campesinos são sujeitos produtores de saberes. Assim,
a relevância deste estudo desenvolvido para a área do conhecimento, neste caso para a
Educação do Campo, centra-se no reconhecimento das escolas com turmas multisseriadas
enquanto território de direito e produtor de saberes específicos e diferenciados. Nesse sentido,
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destacamos que ao buscarmos pensar-sentir-viver uma escola do campo em diálogo com os
saberes de sua comunidade, caminhamos coletivamente rumo à construção de uma educação
do/no campo decolonial, ao respeitar e lidar criticamente com as diferenças.
Referências
Arroyo, M. G. (1999). educação básica e o movimento social do campo. In Arroyo, M. G., &
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i
Livro: Armas, Flores e Amores: a luta que se faz poesia e a poesia que se faz luta. (Organização e autoria de
Adilson de Apiaim e Elemar Luciano Pereira Bilha). Cachoeira do Sul: Editora Monstro dos Mares, 2015.
Estrato do poema: A escola de meus sonhos, p.57.
ii
Este é um dos nomes da América, utilizados pelos indígenas antes da invasão dos europeus. Termo de língua
kuna que significa Terra madura, Terra viva ou Terra em florescimento (Porto-Gonçalves, 2009).
iii
Evidenciamos que foi no Engenho da Galileia que ocorreu o primeiro caso de Reforma Agrária no Brasil, após
o fim da Guerra Mundial. Esse caso repercutiu nacional e internacionalmente. Vários setores da sociedade
foram conhecer essa ação realizada pelos(as) galileus e assim, passou a se pensar em um projeto de Reforma
Agrária que contemplasse o Brasil inteiro.
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Informações do Artigo / Article Information
Recebido em: 25/04/2022
Aprovado em: 15/02/2023
Publicado em: 11/03/2023
Received on April 25th, 2022
Accepted on February 15th, 2023
Published on March, 11th, 2023
Contribuições no Artigo: Os(as) autores(as) foram os(as) responsáveis por todas as etapas e resultados da pesquisa, a
saber: elaboração, análise e interpretação dos dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito e; aprovação da versão
final publicada.
Author Contributions: The author were responsible for the designing, delineating, analyzing and interpreting the data,
production of the manuscript, critical revision of the content and approval of the final version published.
Conflitos de Interesse: Os(as) autores(as) declararam não haver nenhum conflito de interesse referente a este artigo.
Conflict of Interest: None reported.
Avaliação do artigo
Artigo avaliado por pares.
Article Peer Review
Double review.
Agência de Fomento
Não tem.
Funding
No funding.
Como citar este artigo / How to cite this article
APA
Silva, I., & Silva, J. F. (2023). Saberes a serem tratados na escola com turmas multisseriadas: reflexões outras a partir das
expectativas da comunidade campesina. Rev. Bras. Educ. Camp., 8 e14312. http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e14312
ABNT
SILVA, I.; SILVA, J. F. Saberes a serem tratados na escola com turmas multisseriadas: reflexões outras a partir das
expectativas da comunidade campesina. Rev. Bras. Educ. Camp., Tocantinópolis, v. 8, e14312, 2023.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e14312