Revista Brasileira de Educação do Campo
Brazilian Journal of Rural Education
ARTIGO/ARTICLE/ARTÍCULO
DOI: http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12247
Tocantinópolis/Brasil
v. 6
e12247
10.20873/uft.rbec.e12247
2021
ISSN: 2525-4863
1
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Representações duais do rural na cinematografia
brasileira: implicações para a educação
José Leite dos Santos Neto
1
, Afrânio Mendes Catani
2
1
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Programa de Pós-Graduação em Educação. Rodovia Washington Luís, km
235. São Carlos, SP. Brasil.
2
Universidade de São Paulo - USP.
Autor para correspondência/Author for correspondence: jlsn@alumni.usp.br
RESUMO. uma forte representação cinematográfica que
estabelece o rural e o urbano em relação dicotômica, e que se
naturaliza articulando o discurso do campo a problemas sociais e
à desigualdade. No intuito de subsidiar a prática pedagógica de
professores sobre a leitura crítica do rural e do urbano, visamos
problematizar como as formas de representações do campo têm
sido veiculadas pela linguagem audiovisual. Partimos de uma
abordagem qualitativa e combinamos procedimentos
metodológicos da pesquisa documental, historiográfica e análise
fílmica. Para isso, abordamos o discurso dual que representa o
homem do campo em uma perspectiva histórica. Na sequência,
discutimos concepções correntes de delimitação territorial. Por
fim, expomos em uma amostra de filmes a síntese sobre as
representações que seguem a mesma linha de argumentação
sistemática e progressiva que desqualifica o rural em detrimento
do urbano. Concluímos que existe a necessidade de, a partir da
escola, subsidiar a leitura crítica do cinema que supere a visão
dicotômica que naturaliza problemas sociais como particulares
do campo.
Palavras-chave: educação, campo, cinema e educação,
representações cinematográficas, rural e urbano.
Santos Neto, J. L., & Catani, A. M. (2021). Representações duais do rural na cinematografia brasileira: implicações para a educação...
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Dual representations of the rural in Brazilian
cinematography: implications for education
ABSTRACT. There is a strong cinematographic representation
that establishes rural and urban in a dichotomous relationship
that commonly sustains the speech of rural articulated to social
issues and inequality and naturalizes this representation. In order
to subsidise the pedagogical practice of teachers on the critical
stance of the rural and the urban, this paper aims to question
how the representations of the rural have been approached by
the audio-visual language. The analysis has a qualitative
approach and combines methodological procedures of
documentary, historiographic and film analysis. Therefore, it is
approached in a historical perspective the dual discourse that
represents the peasant; in the sequence it is discussed the correct
conceptions of territorial delimitation, and finally, presented, in
a sample of films, the synthesis of representations that follows
the same line of systematic and progressive arguments of
representation of the rural and the urban. The research points to
the conclusion regarding the importance of school, to subsidise
critical reading about the representations covered in films, which
overcomes the dichotomous view that naturalizes social
problems as particular to the rural.
Keywords: education, rural, cinema and education,
cinematographic representations, rural and urban.
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Representaciones duales de lo rural en la cinematografía
brasileña: implicaciones para la educación
RESUMEN. Existe una fuerte representación cinematográfica
que establece lo rural y lo urbano en una relación dicotómica, y
que se naturaliza articulando el discurso del campo con la
problemática social y la desigualdad. Con el fin de subsidiar la
práctica pedagógica de los docentes en la lectura crítica de la
rural y urbano, pretendemos problematizar cómo las formas de
representación del campo han sido transmitidas por el lenguaje
audiovisual. Partimos de un enfoque cualitativo y combinamos
procedimientos metodológicos de análisis documental,
historiográfico y cinematográfico. Para ello, nos acercamos al
discurso dual que representa al campesino en una perspectiva
histórica. Luego, discutimos conceptos actuales de delimitación
territorial. Finalmente, mostramos en una muestra de películas la
síntesis de representaciones que siguen la misma línea de
argumentación sistemática y progresiva que descalifica lo rural
en detrimento de lo urbano. Concluimos que existe una
necesidad, desde la escuela, de subsidiar la lectura crítica del
cine que supere la visión dicotómica naturalizadora de los
problemas sociales como propios del campo.
Palabras clave: educación, campo, cine y educación,
representaciones cinematográficas, rural y urbano.
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Introdução
No curso histórico, as sociedades são
marcadas por transformações e invenções
que demarcam períodos. No século XX,
especialmente em países da Europa e
América do Norte, podemos considerar o
desenvolvimento e aperfeiçoamento da
tecnologia audiovisual como uma das mais
importantes criações humanas, que
desencadeou uma série de transformações
culturais, especialmente na informação, no
entretenimento e na indústria da
publicidade.
Esse artigo indaga questões sobre o
uso crítico do cinema na educação na
perspectiva educacional midiática, partindo
das representações do urbano e do rural na
linguagem cinematográfica. Esse meio de
comunicação se tornou um componente
cultural e assumiu diversas singularidades
como elemento apropriado pela dia
moderna. A principal delas se voltou
predominantemente para a relação entre
entretenimento e educação, que nos seus
desdobramentos enquanto fenômeno
midiático assumiu características para além
de um instrumento de ensino, sendo
também formador, informativo e,
porventura, desinformativo.
Nesse artigo, estamos interessados
em problematizar como as representações
do campo têm sido abordadas pela
linguagem audiovisual e suas implicações
para a educação no intuito de auxiliar
professores em uma leitura crítica sobre as
concepções do que é o meio rural brasileiro
retratado na cinematografia. O estudo teve
enfoque qualitativo e utilizou
procedimentos metodológicos de pesquisa
documental, historiográfica e da análise
fílmica. Para tanto, apresentamos a
dualidade que representa o campo e a
cidade na literatura e no cinema e
explicitamos a equivocada contraposição
entre agrário e urbano, que atribui
problemas sociais do meio rural a causas
naturais e não à ausência de políticas
públicas para o desenvolvimento territorial.
Discutimos também a compreensão sobre a
delimitação territorial e as concepções
correntes que classificam esse espaço. Na
sequência, abordamos algumas
representações de uma pequena amostra de
filmes, analisando como o urbano e rural
são ilustrados e como essa imagem, apesar
do tempo, se mantém atual e segue a
mesma linha narrativa que naturaliza a
precariedade como característica própria
do campo.
Rural e urbano: representações
cinematográficas e estereótipos
A abordagem que busca a
naturalização de estereótipos urbanos e
rurais é histórica e se sustenta na
contraposição de conceitos, dicotomizando
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cidade e campo. Williams (2011), ao
analisar a literatura inglesa, aponta a
Revolução Industrial como um marco
estruturador dessa visão, pois a forma
como as pessoas passaram a tratar o tema
mudou significativamente na época. Antes
daquele período, o campo representava o
espaço natural da vida e o lugar da
simplicidade, enquanto a cidade refletia a
ideia do local de realizações e do
conhecimento sistematizado. Após a
Revolução, essa imagem passou a sofrer
uma distorção progressiva: o meio rural
começou a ser associado ao atraso e à
ignorância e o meio urbano às
possibilidades e ao desenvolvimento.
No Brasil estabelece-se “uma falsa
contraposição entre o campo e a cidade, o
agrário e o urbano, o regional e o
cosmopolita” (Leitão, 2007, p. 182). Essa
relação ocorreu de forma não antagônica
devido a alterações econômicas
significativas na década de 1930, quando a
base do capital foi, progressivamente,
transformando-se de agrária para industrial
após a crise do café.
Nesse contexto, as próprias
atividades agrícolas experimentaram
transformações e, com sua mecanização, a
demanda por mão de obra no campo
diminuiu com a mecanização dos meios de
produção. Com poucas oportunidades
naquele espaço, a alternativa foi a
migração para os grandes centros urbanos.
Assim, o êxodo rural se acentuou, pois a
possibilidade de emprego nas cidades
estimulou a migração de lavradores, ainda
que os salários oferecidos fossem baixos
(Leitão, 2007, p. 199). Os acontecimentos
sociais se converteram em imagens e
representações manipuladas, porque “o
imaginário coletivo brasileiro se
encontra[va] definitivamente povoado por
símbolos urbanos” (Leitão, 2007, p. 230),
o que reforçou a valorização desse espaço.
Também nesse sentido, a ficção
contemporânea, que segue referências e
padrões estéticos do exterior, valeu-se da
modernização e das grandes metrópoles
como forma de criar um abismo entre o
urbano e o rural e reduzir o campo a meras
frações do poder fundiário.
O rural no cinema brasileiro também
mostra a imagem do caipira como ingênuo,
atrapalhado, rude, um indivíduo sem
traquejo social. Tolentino (2001) analisou
um exemplo dessa imagem: Jeca Tatu”.
Esse era um personagem de Monteiro
Lobato que demonstrava claramente um
pensamento depreciativo quanto ao homem
do campo: uma figura estabelecida como
preguiçosa, indelicada e até autoritária. Na
mesma análise, a autora observou que
“Jeca é um sujeito ladino e, em certo
sentido, imbuído de uma ética da
malandragem” (Tolentino, 2001, p. 104).
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Vale fazer um adendo com base na
negatividade da simbologia da obra
“Urupês”, de 1918, que apresentou Jeca
Tatu. O problema começa pelo título do
livro, o qual faz referência a uma espécie
de cogumelo parasitário que compromete o
tronco de árvores e é conhecido por urupê,
de nome científico Pycnoporus
sanguineus.
Monteiro Lobato criou Jeca como a
representação da miséria, da ignorância e
do atraso econômico do país. Em narrativa
explicita marcada pela coloquialidade, o
autor o tipificou como alguém relapso,
negligente, relaxado e de aparência
desleixada, que andava sempre descalço e
era preguiçoso ao ponto de sequer cuidar
de sua higiene; muito distante de qualquer
nível de educação ou cultura, ele era um
ser repleto de crendices e de ingenuidades.
Jeca Tatu é descrito como um sujeito
que passa a maior parte do seu tempo de
cócoras sobre seus calcanhares rachados
(por não gostar de usar sapatos) ou sentado
em um banco de três pernas para facilitar o
equilíbrio caso fosse de quatro pernas,
seria preciso aplainar o chão, algo que ele
não seria capaz de fazer. Sem disposição
para realizar qualquer atividade, o
personagem apenas buscava alguns
alimentos no mato, mas nunca teve a ideia
de cultivar uma plantação devido a sua
preguiça (mesmo sem abrir mão do cigarro
de palha).
Quando comparece às feiras, todo
mundo logo adivinha o que ele traz:
sempre coisas que a natureza derrama
pelo mato e ao homem só custa o
gesto de espichar a mão e colher
cocos de tucum ou jiçara, guabirobas,
bacuparis, maracujás, jataís, pinhões,
orquídeas; ou artefatos de taquara-
poca peneiras, cestinhas, samburás,
tipitis, pios de caçador; ou utensílios
de madeira mole gamelas,
pilõezinhos, colheres de pau. Nada
mais. Seu grande cuidado é espremer
todas as consequências da lei do
menor esforço e nisto vai longe.
(Lobato, 2012, p. 13).
O matuto analfabeto era preguiçoso,
tinha pele amarelada e aspecto doentio,
além de estar sempre magro, malvestido,
de barba rala e cercado pela pobreza. Essas
eram as características de alguém que
sequer tinha noção dos seus direitos e que
vendia o voto sem ao menos saber o que
isso representava: Vota. Não sabe em
quem, mas vota. Esfrega a pena no livro
eleitoral, arabescando o aranhol de
gatafunhos e que chama ‘sua graça’”
(Lobato, 2012, p. 19).
O retrato de Jeca ecoou de tal
maneira que alguns atribuíram ao autor o
rótulo de inimigo do caboclo por ele
supostamente tratar a imagem desse sujeito
com descaso. Schmidt (1948) revela que,
ao contrário, Monteiro Lobado estava
fazendo uma crítica ao poder público e às
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políticas que transformaram Jeca nesse
sujeito desumanizado.
O Brasil dessora-se e morre comido
pelos vermes sem qualquer amparo
do poder público. Ruy Barbosa leu
essa página da tribuna do Senado. O
Brasil inteiro ouviu-a, admirou-a.
Então, muitos proclamaram que
Lobato era inimigo do nosso caboclo,
etc. Sua resposta, porém, foi curta: “o
Jeca não é assim: ‘está’ assim”.
(Schmidt, 1948, p. 295).
O personagem Jeca se tornou
também a representação sombria dos
trabalhadores do campo que sofrem com a
falta de saneamento básico, saúde,
educação e infraestrutura. Essas
necessidades são escondidas pelo rótulo do
preguiçoso e do alcoólatra, que, desveladas
pelo autor, escancaram a real imagem:
Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no
romance e feio na realidade!” (Lobato,
2012, p. 13).
Tal personagem deu origem a
definições para “jeca” como sinônimo de
caipira. O dicionário Michaelis (2017) traz
os seguintes significados: “1- Diz-se de
pessoa que mora na zona rural; araruama,
caipira. 2- Diz-se de pessoa que revela mau
gosto ou falta de requinte; brega, cafona”
(Jeca, 2017). Enquanto o termo “Jeca-
Tatu” seria o mesmo que “caboclo do
interior brasileiro, morador da zona rural,
de estilo de vida muito simples; caipira,
jeca” (Jeca-Tatu, 2017).
Na história do cinema brasileiro,
também podemos identificar essa
representação na chanchada, que é
considerada um gênero dentro do cinema e
que perdurou por aproximadamente 60
anos (1900-1960). As chanchadas eram um
tipo de comédia com linguajar teatral e
produção precária “dirigidas para e
sustentadas por um público urbano
semianalfabeto e proletarizado. Estamos
falando, enfim, de um cinema popular”
(Catani, 2004, p. 81). Esse gênero trouxe
protagonismo à figura do homem do
campo, pois muitos de seus personagens
eram de origem rural e tinham dificuldades
em se adaptar ao mundo urbano,
demonstrando estranheza às novidades.
Catani (2004) divide a chanchada em
dois períodos. O primeiro foi até meados
de 1940: “grosso modo, essas películas têm
argumentos, motivos e situações bastante
simples, com números musicais
homogêneos, carnavalescos (e, às vezes,
juninos)” (p. 83). O segundo foi de 1940
até o início da década de 1960. Nele, a
chanchada passou a ter uma organização
mais complexa desde o roteiro até o
enredo. Os temas comumente abordados
no gênero, como os juninos e
carnavalescos, começaram a sair de cena e
deram lugar a conteúdos “que se referem
ao cotidiano do homem urbano, a aspectos
políticos e a problemas da realidade
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socioeconômica vizinha” (Catani, 2004, p.
85).
É importante destacar que os
criadores da imagem do campo e do
camponês tomam como oposta a imagem
do urbano e do homem que vive na cidade,
como se os problemas sociais fossem
específicos do meio rural e não derivados
da falta de políticas para o
desenvolvimento territorial e da escassez
de incentivos à economia local.
Concordando com Bourdieu (1997), que
afirma que os meios de comunicação são
convertidos em instrumento de opressão
simbólica, entendemos que essas
representações existem com o intuito de
lançar um paradigma, quando, na verdade,
deveriam ser um instrumento de
democracia direta e atuar frontalmente na
construção do imaginário social.
Historicamente, a mídia ilustrou o
espaço do pequeno agricultor como um
lugar sem possibilidades e inferiorizado,
sinônimo de atraso. Contudo, é importante
conhecer alguns elementos que contribuem
para esse paradigma, principalmente a
ideologia presente nos filmes que reforçam
esse pensamento sobre o campo. A esse
respeito, Araújo (2013) constatou que “o
que se sobressai é a atração pela
modernidade urbana, enquanto o campo
tradicional é representado como lugar de
brutalidade e exploração, signos de um
atraso que deve ser superado” (p. 432).
Outro elemento depreciativo que
recai sobre o rural é a imagem
inferiorizada dos sujeitos que vivem no
campo, pois “tudo passa a ser visto a partir
de um padrão estabelecido por interesses
externos, como se fosse juízo correto”
(Bogo, 2008, p. 103). Isto é, paradigmas
urbanos se tornaram o padrão. Nessa
perspectiva, os meios de comunicação
atuam de forma subserviente aos interesses
dominantes e reforçam favoritismos e
estereótipos por meio de seu discurso.
Enquanto categoria abrangente, o
campo se manifestava por meio de divisões
territoriais com espaços, organizações e
estruturas diversas, tais como grandes
fazendas, sítios, assentamentos rurais. Hoje
ele também pode ser caracterizado pelas
monoculturas e a agroindústria, que
possuem práticas diferentes e são espaços
ocupados por outros sujeitos. Whitaker
(2009) apresenta como campo/rural
“aquele do pequeno produtor de alimentos,
que nele reside e também aquele que
continuidade histórica ao atraso da
monocultura e do latifúndio” (p. 34). Essa
é uma das formas de conceituar o campo e
o camponês, isto é, um sujeito que vive no
espaço rural, que produz para a sua
subsistência e que não é alheio às questões
de desenvolvimento, apesar da
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desigualdade social que o cerca. Dado o
panorama sobre as representações do rural,
na sequência discutiremos a constituição
histórica desse contexto e suas diferentes
formas de categorização.
Urbano e Rural: delimitações
territoriais
Embora o Brasil tenha sido um país
predominantemente agrário ao longo da
sua história, existem discussões sobre a
questão da delimitação de territórios
urbanos e rurais. A partir de meados dos
anos 1980, o campo passou por uma
reconfiguração que pode ser denominada
“Novo Rural” e que ocorre em outros
países desenvolvidos com base em três
grupos de atividades:
a) Uma agropecuária moderna
baseada em commodities e
intimamente ligada às agroindústrias;
b) Um conjunto de atividades não-
agrícolas ligadas à moradia, ao lazer
e a várias atividades industriais e de
prestação de serviços;
c) Um conjunto de “novas”
atividades agropecuárias localizadas
em nichos especiais de mercado.
(Silva & Grossi, 2001, p. 1).
Essas atividades se relacionam de
forma estreita, permitindo a atuação de
indivíduos em diferentes espaços e em
mais de um território, o que mescla o
urbano e o rural. Isso possibilitou que
sujeitos morassem em um meio e
trabalhassem no outro.
Ao mesmo tempo, Silva e Grossi
(2001) também abordam a diferenciação
entre o “Velho” e o “Novo Rural”. No
primeiro, o espaço é exclusivamente
agrícola e o cuidado com o meio ambiente,
bem como as políticas públicas, são
centrados na produção. O segundo se
configura como um lugar multifuncional
em que há focos de produção agrícola e
agroindustrial, além de locais com
infraestrutura adequada para habitação, da
possível geração de renda de fontes
agrícolas e da preservação do meio
ambiente e da cultura da região (Silva &
Grossi, 2001).
Esse “Novo Rural” busca superar a
dicotomia entre cidade e campo proposta
por Whitaker (1992), pois nele ambos os
espaços compõem uma totalidade e se
articulam, se integram e se interpõem em
um movimento dialético. Entendemos que
o rural e o urbano não se opõem antes,
relacionam-se em uma sociedade movida
por contradições.
Veiga (2005) questiona os modelos
de classificação territorial do Brasil ao
apontar que eles distorcem os índices de
urbanização. São consideradas “urbanas”
todas as cidades ou vilas, sem distinção do
tamanho de sua estrutura e do trabalho
desenvolvido pela população que ali vive.
O autor cita um município registrado no
censo de 2000 com apenas 18 habitantes e
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problematiza, indagando se aquele local
teria serviços públicos essenciais como
saneamento básico, postos de saúde,
escolas, entre outras características típicas
de um centro urbano.
Para Veiga (2005) é um equívoco
pensar nessa divisão, pois, dos 5.507
municípios do país no ano de 2000, 1.176
tinham menos de 2 mil habitantes, o que
não constitui urbanização real, a qual
depende de recursos e serviços e não
apenas da densidade populacional. Tais
argumentos alimentam o discurso de
aumento do território urbano no Brasil de
maneira equivocada, pois, embora haja
crescentes índices de urbanização, os
pequenos municípios se encaixam
predominantemente em condições rurais de
vida.
Diferente da concepção adotada por
Veiga (2005), é importante considerar que
campo e cidade sempre foram
interdependentes. Com o desenvolvimento
econômico e social atual, não é possível
caracterizar esses espaços como eles eram
um século. É necessário ponderar a
importância dessa relação de dependência
mútua, pois o rural e o urbano não se
contrapõem. Essa dicotomia precisa ser
superada e a visão que atribui um grau de
superioridade ao espaço considerado mais
desenvolvido deve ser deixada de lado.
As analises do IBGE (2017) apontam
as seguintes classificações territoriais:
urbano, intermediário adjacente,
intermediário remoto, rural adjacente e
rural remoto. Com essa terminologia, o
instituto mostrou o crescente processo de
urbanização dos municípios brasileiros em
2010 em função das características físicas
e sociais do espaço. Do total de
municípios, 1.456 (26%) são classificados
como predominantemente urbanos e
reúnem 75,89% da população total do
Brasil.
De acordo com o IBGE (2017), em
função das mudanças e transformações no
campo e nas cidades nos últimos 50 anos,
surgiu a demanda de abordagens
multidimensionais para compreensão e
classificação do território nacional. Em
face dessas transições, destaca-se:
Em relação ao meio rural vale
destacar elementos como o aumento
das atividades não agrícolas, a
mecanização, a intensificação da
pluriatividade, a valorização da
biodiversidade, a expansão do setor
terciário e a intensificação de fluxos
materiais e imateriais na
caracterização e maior compreensão
de suas dinâmicas. Por outro lado, a
intensa urbanização vivenciada no
país deve levar em conta hoje não
apenas os processos migratórios
como também o fenômeno da
periurbanização tanto pela difusão do
modo de vida urbano quanto pela
construção de novas zonas
residenciais. (IBGE, 2017, p. 08).
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Na história da urbanização, tivemos
configurações diferentes do urbano e do
rural vindas de especificidades derivadas
das condições econômicas que
determinaram cada época. Nesse sentido,
Reis (2006) descreve como construções
também refletiam a interdependência entre
esses espaços:
Durante séculos as diretrizes para
construção e organização das formas
das cidades estiveram baseadas em
esquemas que previam seu
crescimento do centro para periferia,
com núcleos urbanos que distavam
entre si 20 quilômetros ou mais.
Entre estes, estendia-se o campo,
como espaço de produção rural. Com
frequência, as cidades eram muradas
e de modo regular estabeleciam-se
oficialmente os limites da área de
competência administrativa de seus
governantes. Havia o campo e a
cidade, como dois universos
perfeitamente definidos, mas
interdependentes. (Reis, 2006, p. 20,
grifo nosso).
Essa interdependência é o que
buscamos trazer à tona como forma de
dissuadir o estereótipo e a visão pejorativa
que comumente se sobressaem na
representação do meio rural pelo cinema.
Apesar das diferentes configurações de
campo e de cidade constituídas
historicamente e movidas pela economia
predominante, sempre houve uma relação
de dependência mútua e não de
contraposição entre esses espaços.
Como podemos constatar quando
Whitaker (2009) demonstra em seus
estudos o quanto a mídia contribuiu para a
depreciação da imagem do campo, as
condições materiais de cada ambiente,
urbano ou rural, resultam em estereótipos
negativos que descaracterizam todo o
trabalho e as lutas sociais dos
trabalhadores de ambos. Para enfrentar e
contrapor essa imagem negativa, a autora
trabalha com dados do Censo
Agropecuário do IBGE que confirmam a
importância da pequena propriedade na
produção de alimentos. De maneira oposta
a essa visão e como forma de desqualificar
a relevância do pequeno camponês, “foi
encomendada uma ‘pesquisa’ para negar os
dados do IBGE e a dia, subserviente ao
poder, deu voz aos representantes do
latifúndio, que saíram a campo chamando
os assentamentos de Reforma Agrária de
Favelas Rurais” (Whitaker, 2009, p. 35).
As produções são divulgadas nos
meios digitais e se tornam um forte
instrumento de comunicação de massa,
facilitando ainda mais o acesso da
população. Todo trabalho, principalmente
quando voltado à linguagem, tem uma
intencionalidade e, por conseguinte, uma
ideologia favorável a uma posição e oposta
à outra. A língua é a expressão das
relações e lutas sociais, veiculando e
sofrendo o efeito desta luta, servindo ao
mesmo tempo de instrumento e de
material” (Bakhtin, 1997, p. 17). Assim,
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reforçamos que os meios de comunicação
têm forte influência ideológica e educativa
sobre os espectadores.
A opção por dizer algo de
determinado modo e não de outro é o que
Bakhtin (2003) chama de entonação, visto
que a entonação expressiva é um traço
constitutivo do enunciado e não existe fora
dele. O autor observa que tanto a palavra
quanto à oração enquanto unidades da
língua são desprovidas de entonação
expressiva” (Bakhtin, 2003, p. 290). Dessa
maneira, contatos e embates ocorrem nos
fatos diários, nas lutas travadas
cotidianamente, nas falas e nos
acontecimentos, e são essas relações que
apresentam significados, os quais
constituem e constroem gradativamente
modos de viver e de pensar. Os meios de
comunicação, por sua vez, estão por toda
parte e contribuem insistentemente em
como sujeitos veem o mundo.
Portanto, devemos reconhecer a
formação do campo e da cidade e entender
como ocorre a sua relação e a sua
interdependência a partir de uma
perspectiva histórica. Uma possível forma
de contrapor a ideologia estereotipada que
tende a permanecer no imaginário social é
a tomada de consciência a respeito desse
processo de mutualidade. Os meios rural e
urbano se constituem como espaços
distintos e, ao longo da história, as relações
econômicas determinaram o
desenvolvimento de ambos sem a ideia de
contraposição. Compreender isso não é
minimizar o campo ou a cidade, mas sim
perceber que a existência de um é
necessária para que haja o outro.
O campo e a cidade: representações
fílmicas
Antes de pensar sobre como analisar
um filme, é preciso entender qual motivo
nos levou a esse processo. Além disso, seja
essa obra ficção, documentário ou outra
forma de registro audiovisual, entender sua
aplicabilidade nos possibilita dar ênfase
aos seus elementos mais importantes. Para
Penafria (2009), uma análise fílmica pode
ser dividida em quatro partes: a
interpretação da história do filme,
considerando o roteiro e os diálogos,
atentando para as informações passadas e o
quão crível é a história, bem como para sua
organização, seu ritmo e sua sequência; a
observação da relação entre cenário e
diálogos, a construção de personagens, a
performance dos atores, a adequação do
figurino e a contribuição da música para a
narrativa; a inferência das técnicas de
filmagem, o tipo de enquadramento de
câmera e o impacto do enquadramento na
construção da cena; e, por fim, a pesquisa
sobre o tipo de orçamento que a produção
obteve saber quem financiou a produção
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também é uma forma de entender a
ideologia presente no filme.
Vale considerar que esses
elementos básicos para a análise podem ser
ampliados e impulsionados por outros
fatores que possibilitem uma compreensão
mais completa tanto do filme quanto do
seu contexto. Dito isso, analisamos filmes
nacionais que propiciaram a discussão da
temática urbano e rural como parâmetro
para pensarmos fundamentos da utilização
do cinema na perspectiva da educação
midiática, a partir da dicotomia de
conceitos em que um se sobrepõe ao outro.
Nessa análise, identificamos as diversas
formas de representação e os discursos
envolvidos com o tema em questão com
vistas à problematização do trabalho
pedagógico. Segundo Ferro (1992),
produções cinematográficas são
semelhantes a quaisquer documentos que
buscam narrar os processos históricos e,
por isso, nelas podemos encontrar posições
ideológicas correntes. Filmes, por meio da
investigação de seu contexto de produção,
são objetos que nos possibilitam enxergar
o “não visível”, ou seja, o que está além da
obra em si. No entender de Catani e Gilioti
(2004, p. 111), devido à variedade de
imagens e de recursos do cinema, nele o
termo “representação” “contempla a ideia
segundo a qual construções discursivas
e interpretativas díspares sobre um mesmo
fato, decorrentes da cultura específica do
grupo em questão e do lugar social por ele
ocupado”.
O cinema, além de narrar histórias, é
um dos veículos midiáticos que contribuem
para a construção de significados e
reproduzem aspectos sociais. De acordo
com Ferro (1992), ele é também um
importante instrumento para a análise
histórica. Filmes constroem um ponto de
vista: reportam o passado, presente ou
futuro; apresentam culturas; e refletem a
realidade. Podemos considerá-los mais do
que produtos culturais que lançam modas,
pois eles constroem concepções políticas,
sociais e culturais sobre o que passou
(Duarte, 2002).
O cinema, ao longo de mais de um
século de existência, estreou uma nova
cultura e disseminou sua linguagem por
diversos meios de comunicação, o que fez
com que ele se tornasse parte do cotidiano
de diversos grupos sociais e começasse a
atingir e influenciar outros aspectos da
sociedade, conectando milhões de pessoas
a ideias, produtos, entretenimento e lazer.
A linguagem cinematográfica foi
assimilada por várias mídias com focos
diversificados, não para o
entretenimento, mas também para a
propagação de informações, para fins
educativos e até políticos. Por meio de seu
desenvolvimento, surgiu a possibilidade de
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influenciar a formação cultural, intelectual
e comportamental de indivíduos tanto em
relação à motivação de consumo quanto à
conduta pessoal. De modo geral, filmes se
tornaram instrumentos com grande
potencial educativo e formativo, além de
plataformas que tendem a naturalizar e
reforçar estereótipos, induzir ideias e
delinear padrões.
Parte do universo cultural trazido
pelo cinema possibilitou a apresentação de
novos horizontes, culturas e modos de
vida, pois sua capacidade e habilidade não
somente expõem e entretêm, mas também
informam, educam e seduzem pelas
imagens.
Por exemplo, como discutido
anteriormente, apesar de o Brasil ser um
país com origem rural, impera no senso
comum uma visão pejorativa desse espaço.
Em contraposição, o urbano ganha
visibilidade, o que dissemina o preconceito
e a negatividade em relação ao campo e
fomenta um discurso favorável às cidades,
que são heranças da formação sócio-
histórica brasileira comumente
representadas e reforçadas pelos meios de
comunicação como espaço padrão da vida
humana. O cinema, enquanto veículo
midiático, participa da construção dessa
imagem.
Isso posto, abaixo estão expostos os
modos de representação do rural e do
urbano em uma pequena amostra da
cinematografia nacional.
Deus e o Diabo na terra do Sol
(1964) retrata a realidade do sertanejo,
mostrando a miséria, a ignorância, a
revolta contra a exploração e apontando o
fim de todo sofrimento causado pelas
condições imediatas calcadas em um
catolicismo ritualístico e místico. São
apresentados aspectos de personagens
típicos do nordeste brasileiro e elementos
culturais como cordel aliados à vida
precária oriunda da ausência de qualquer
forma de direitos trabalhistas e do
abandono social. É importante a
observação do contraponto entre o sertão, o
qual é representado com casas dispersas
em uma imensidão de território, e a cidade,
dotada de comércio, além da direção ao
mar, que simboliza a nova vida comumente
vislumbrada por indivíduos em migração
para grandes centros urbanos, onde se
busca uma existência com trabalho, casa e
alimentos, que são o mínimo para a
dignidade humana.
Eles não usam Black-Tie (1981)
apresenta um período de transição entre o
regime militar e o começo da democracia
no início dos anos 1980. O filme perpassa
por temáticas sociais como o foco no
sindicalismo e organização dos
trabalhadores, mas também tem um olhar
para a realidade das favelas brasileiras que
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deixa clara a distância entre as classes
sociais, que são representadas no filme
pela oposição de periferia e burguesia, algo
comum em perspectivas cinematográficas.
Central do Brasil (1998) revela
grandes contrastes, principalmente do
mundo urbano no final do século XX,
apresentando aspectos do Rio de Janeiro,
sertão da Bahia e Pernambuco. No filme,
são recorrentes aspectos de violência
caracterizados como típicos de cidades
grandes. É possível identificar a
representação das condições de vida no
subúrbio resultantes da migração
populacional do sertão nordestino em
busca de melhores oportunidades no
Sudeste, o que indica uma grande
representatividade do urbano e do rural.
Quanto vale ou é por Quilo? (2005)
traz importantes aspectos do período
colonial que dão base para um
entendimento das representatividades de
urbano e rural na história, pois apresenta
costumes das classes dominantes daquela
época e como eles ainda estão presentes no
Brasil atual com discursos reestruturados.
Por meio das analogias estabelecidas no
filme, colocam-se em dúvida valores como
justiça social e solidariedade, porque eles
podem ter variações em função de lucros,
algo que percorre a obra na figura das
organizações não governamentais (ONGs)
que atendem trabalhadores em situação
precária.
Tapete Vermelho (2006) representa
o interior do Estado de São Paulo e mostra
um camponês muito parecido com Jeca
Tatu, das obras de Monteiro Lobato, e
retratado também por Amácio Mazzaropi
no cinema. Extremamente caricato e com
trejeitos cômicos, o personagem tem
vestimentas que levam ao riso é posto em
uma relação que estabelece desacordo com
os códigos de modernidade. Sua figura
vincula um caráter de extremo atraso ao
campo travestido de uma ética da esperteza
e de um tom irônico referente às tradições
e crenças populares.
Cine Hollíudy (2013) se passa no
interior do Estado do Ceará e representa
um período histórico da década de 1970.
Além de uma imagem caricata dos
personagens, percebe-se uma mescla entre
o sujeito “bobo” e o “sacana”, apontando
para uma visão estereotipada do rural.
Embora tenha nuances cômicas, o filme
mostra como o cearense é retratado em
outros estados e recorre à cultura local para
desencadear a ironia.
A História da Eternidade (2015)
retrata o sertão com tradições marcadas
pelo atraso e a improbabilidade de
mudanças sociais por meio da utilização de
uma paleta de cores em tons de bege e
cinza. O filme reforça a violência imposta
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pelo machismo e o preconceito que
percorre o ideário dos personagens. As
condições limitadas de vida não são apenas
materiais; elas estão enraizadas no
pensamento retrogrado.
Embora não vise à naturalização de
estereótipos urbanos e rurais, essa
abordagem atua e vem se perpetuando na
constituição do universo de referências dos
sujeitos, principalmente aqueles que não
percebem os filmes como fonte de
informação e questionamento da realidade
social. O rural é comumente retratado
como o espaço que representa o lugar da
simplicidade, do atraso e da ignorância,
refletindo assim uma imagem pejorativa e
deteriorada sobre os indivíduos que
habitam. Nesse sentido, cabe à escola,
enquanto instituição voltada à educação,
utilizar uma linguagem corrente para
somar a seus outros elementos
pedagógicos, visando potencializar o
aprendizado que ela oferta e instruir os
alunos a compreender de maneira crítica os
conteúdos veiculados para além das suas
aparências iniciais, que podem ser
reducionistas. Esse termo não se refere a
aspectos artísticos, mas sim às
representações que se constituem como um
recorte simbólico de determinado conceito
(rural, urbano, feminismo, gênero, raça,
etc.), e podem passar a se constituir como
parte do universo de referências dos
sujeitos.
O cinema se constitui como um
contexto em que “uma correlação
estreita entre uma imagem fílmica e um
determinado espaço geográfico e sua
contrapartida na realidade concreta”
(Costa, 2013, p. 252). Assim, não há
apenas um recorte fotográfico, mas
também a construção de um mundo a partir
da compreensão da imaginação como
significação, isto é, as representações de
determinado filme devem ser
compreendidas em dois aspectos
interligados. Essas seriam as
“apresentações-interpretações” as
narrativas, as imagens fílmicas e os
significados que elas constroem/produzem
e, também, as imaginações
relacionadas aos lugares e espaços
“imagetificados” e narrados (Costa, 2013,
p. 252).
Filmes possuem também um caráter
educativo e é possível explorar o seu
potencial de ensino (Duarte, 2002;
Fernandes, 2007 & Fabris, 2008). O
cinema e a educação são formas de
socialização dos indivíduos, e ambos,
como instrumentos de construção cultural,
produzem saberes, identidades e visões de
mundo. Os meios de comunicação de
massa, de modo geral, exercem uma
função pedagógica sobre sujeitos, pois, ao
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assistirmos um filme, independentemente
do motivo que nos conduziu a ele, é
possível que aprendamos algo.
Considerações finais
Diante do exposto, com base na
literatura sobre o rural e o urbano e na
heterogeneidade que compõe o campo e
sua representação sistemática no cinema,
problematizamos as implicações do tema
para a educação no intuito de considerar
filmes enquanto fontes históricas que
registram o presente, reportam o passado e
refletem a realidade. Nesse sentido,
enquanto uma linguagem que comunica,
informa, ensina e questiona, o cinema
também é um elemento a ser trabalhado na
escola.
Desse modo, uma educação
midiática que vise à desnaturalização ou à
desconstrução de ideias pejorativas
comunicadas pela dia de massa deve
levar em conta dois fatores correlatos:
primeiro, a abordagem crítica, que
considera questões políticas e sociais, bem
como a não neutralidade da linguagem e a
observação de posicionamentos
ideológicos implícitos; e, segundo, a
estética midiática ou estética do
audiovisual, que envolve a narrativa e os
recursos de som, imagem e efeitos para
construção da mensagem e da ideologia
inseridas no contexto do enredo
comunicado.
Existe uma linha narrativa histórica
que representa o campo e a cidade em
contraposição e atribui causas naturais a
problemas sociais do meio rural, o que
resulta em estereótipos e preconceitos.
Nesse sentido, defendemos a importância
de uma leitura crítica de tais concepções
para estabelecermos uma formação crítica
que contribua para o reconhecimento de
um processo socialmente desigual e não
natural constituído ao longo das décadas.
Isso não implica questionar a produção
cinematográfica, mas sim ampliar o olhar
para perceber que filmes também retratam
uma realidade que é precária e resultado de
uma negligência histórica.
Por fim, defendemos também a
importância da educação midiática para as
escolas. Para que a escola concretize o
objetivo de formar sujeitos críticos e
preparados para exercer sua cidadania em
uma democracia, ela deve romper com a
possibilidade de os alunos se tornarem
espectadores passivos que aceitam as
interpretações superciclistas e rasas que
normalmente são comunicadas pela maior
parte da mídia presente na sociedade atual.
Nessa perspectiva, a educação midiática
não visa limitar a escolha de um tipo de
tema ou especificar quais filmes devem ou
não ser utilizados, mas sim
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instrumentalizar o olhar dos indivíduos.
Isso significa proporcionar aos alunos
ferramentas para uma observação crítica ao
invés de reforçar o uso tradicional
(passivo) de filmes e mídias correlatas e
possibilitar a percepção e identificação de
como a linguagem desses meios retrata
fatos, influencia, reflete, constrói e reforça
valores que contribuem, muitas vezes, para
nossas decisões pessoais.
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Informações do Artigo / Article Information
Recebido em : 23/05/2021
Aprovado em: 25/08/2021
Publicado em: 30/09/2021
Received on May 23th, 2021
Accepted on August 25th, 2021
Published on September, 30th, 2021
Contribuições no Artigo: Os autores foram os
responsáveis por todas as etapas e resultados da
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dados; escrita e revisão do conteúdo do manuscrito
e; aprovação da versão final publicada.
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Santos Neto, J. L., & Catani, A. M. (2021).
Representações duais do rural na cinematografia
brasileira: implicações para a educação. Rev. Bras. Educ.
Camp., 6, e12247.
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ABNT
SANTOS NETO, J. L.; CATANI, A. M. Representações
duais do rural na cinematografia brasileira: implicações
para a educação. Rev. Bras. Educ. Camp.,
Tocantinópolis, v. 6, e12247, 2021.
http://dx.doi.org/10.20873/uft.rbec.e12247